Pára de fumar, meu filho

A médica gritou para que deitassem minha mãe no chão e, para o meu horror, começaram a fazer massagem cardíaca. Não quis continuar vendo. …

A médica gritou para que deitassem minha mãe no chão e, para o meu horror, começaram a fazer massagem cardíaca. Não quis continuar vendo. E quando voltei me disserem simplesmente que ela havia parado. Não disseram: ela morreu, ela faleceu. Usaram uma figura de retórica médica: sua mãe parou. Havia quase meio ano que não fumava. Saí dali, atravessei a rua e comprei uma carteira de cigarros. Os meus irmãos e irmãs, avisados, se pam a caminho. Eu sabia que minha velhinha, internada naquela clínica, podia morrer, mas jamais imaginei testemunhar a brutalidade daquela cena. Depois, sentei num banco de jardim nos fundos no pátio da clínica, e ali comecei a chorar e a fumar.
Havia quase seis meses eu não fumava, a morte repentina da minha mãe me fez voltar, coberto de "direitos". Logo criei justificativas filosóficas para continuar fumando: somos um grão de areia, uma casquinha de noz nas águas injustas e revoltas da vida, a chama se apaga a qualquer momento, o que adianta não comer ovos estrelados, derretendo em cima do pão fresquinho. De que adianta a ingestão do abominável repolho cru, que é bom para os intestinos, de que adiante não fumar? - me perguntava inflado de razões tabagistas. Dane-se, fuck you médicos, a medicina - e dava tragadas revoltadas, olhando para a brasa do cigarro enquanto as lágrimas escorriam.
ado o primeiro impacto da perda, segui fumando, mas mantinha um certo controle para não explodir a quantidade de cigarros, como antes. Num belo dia lembrei de um fato aparentemente isolado. Lembrei que no período em que fiquei sem fumar, fui tomado de uma alegria aparentemente injustificada. Vivia mais alegre pelo simples fato de ter vencido uma batalha onde a maioria fracassa. Algo difícil de entender para quem nunca fumou. Ser mais feliz por não fumar, isso sim que é um raro prazer, de impossível tradução.
O que quer que eu diga? Parar e não voltar a fumar é como voltar da guerra vivo e vitorioso. É como acordar os sentidos que estavam hibernando e sentir um novo suprimento de energia vital invadir cada canto, canto redondo, digamos, do corpo e do cérebro, como se o ato de respirar desse barato.
Uns três meses depois voltei na clínica onde minha mãe havia morrido, não sei porque (e estou farto de saber). Fui lá para me desassombrar, para racionalizar o cenário, falar com as pessoas de novo, gastar, gastar tudo aquilo por que ei. Após algumas conversas constrangidas, comecei a me dar conta que ninguém da clinica queria falar comigo sobre o assunto; para eles, profissionais, era página virada. Mas, quando saí, uma enfermeira me acompanhou até o portão de entrada, e me contou com naturalidade um fato que me deixou estarrecido. Me disse que no dia em que morreu, minha mãe teria dito a ela: "? se me acontecer alguma coisa, diz para o meu filho Paulo não voltar mais a fumar, ele fica tão feliz quando não está fumando?"

Isto já faz três meses, e há três meses não voltei a fumar nem mais um cigarro. Não por achar que recebi uma mensagem amorosa do além. Mas porque a minha mãe também havia notado que eu andava estremecido por uma nova alegria depois que havia parado de fumar.
Se quiser fumar, fume, esta é uma decisão profundamente solitária e íntima. Melancolia, solidão, estresse, medo e raiva combinam com cigarro. Difícil, quase impossível, é fazer com que o fumante entenda que o cigarro é um ente "mágico", e é, e que, em vez de permitir que você lute contra as barras, o maldito faz outra coisa. Ele "costura" essas sensações na sua alma, de modo a lhe proporcionar prazer na melancolia, bem estar na solidão, adrenalina no estresse, e uma coragem diante do medo que só dura o tempo que o cigarro queima. Em seguida tem que acender outro.
Mas eu entendo quem fuma. Agora que me livrei, eu acho que o cigarro é uma bosta (eu ia escrever outra coisa, mais feia e mais suja, mas decidi "amainar" o vocabulário). Mas uma coisa é certa: aumentou o meu carinho, o meu respeito e a minha imensa compaixão pelas pessoas que sofrem de tabagismo.Eu sei qual é que é.

Autor

Paulo Tiaraju é publicitário, diretor de Criação da agência Match Point, cronista e violeiro. Foi o primeiro criativo gaúcho a ganhar o prêmio Publicitário do Ano, concedido pela Associação Riograndense de Propaganda (ARP). É pai de Gabriel Nunes Aquino.

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