Otimismo

Sabia que seria um saco aquela apresentação da escola de dança naquele fim de ano, em especial. Crianças cuidando umas às outras, copiando os …

Sabia que seria um saco aquela apresentação da escola de dança naquele fim de ano, em especial. Crianças cuidando umas às outras, copiando os os, errando o lado. Sempre fica uma gordinha paralisada, assustada com o escuro da platéia, procurando a mãe ou o pai naquela multidão. Naquele ano, especialmente, ela havia feito 16 anos. Não era mais uma criança, já tinha até namorado e não poderia ficar brincando de escolinha para sempre. Os pais já a queriam profissional.


"Dança é só para se divertir", dizia ela, e a família sempre cobrando resultados. Fora assim com o balé, com o flamenco e agora decepcionava a todos escolhendo dança de salão. Que vulgaridade. Chamavam-na de chacrete, apesar dela nem saber do que se tratava. Queriam dança de maior importância, clássica, séria, profunda, trabalhada. Arte, enfim. Mas ela tinha 16 anos, adorava os brilhos das roupas, das luzes, o camarim lotado, aquela confusão e muitos ensaios. Adorava a música, o astral, os amigos  e as diversas apresentações "Classe B", conforme comentários irônicos dos pais. No dia daquela apresentação, em especial, estava em jogo o limite da paciência da progenitora (e um de muitos padrastos em sua vida). Naquele dia, exatamente, sabia que não receberia flores costumeiras ao final das apresentações de balé, quando se destacava e ainda era uma promessa. Não deu outra.


Depois de duas horas de revezamento entre a gorda bailarina de dança do ventre e a aprendiz de equilibrista, que quase perdeu os sentidos ao prender um dos punhos na enorme corda de algodão, sua família a encontraria no palco. Todos os participantes pulavam de alegria, mas ela sabia que o sentimento que a dominaria seria a decepção. Eles esperavam sempre mais dela. Esperavam mais do que coreografias de iniciante, roupas exíguas e parceiros duvidosos. Esperavam mais do que aquele cenário de papel de alumínio, esperavam mais do que bailarinas com as meias rasgadas. E foram chegando devagar. Ela os avistava de longe. Se aproximariam dela, como para dar pêsames. Ela acabara de dançar uma polquinha vestida de mamãe Noel. Já havia dançado a Tarantela e uma musiquinha russa prá lá de caricata. Sabia disso, mas se divertia e era o que importava. Eles vinham se aproximando.


"Sentimos muito", disseram, "mas, sinceramente detestamos tudo isso. Não tem classe. Não é arte". Ela, desconfortável, agradeceu por terem vindo e eles aplicaram ali mesmo o golpe de misericórdia: não haveria em 2008 verba para "aquele" tipo de arte. Perguntaram, em seguida, sem perceber o constrangimento, se ela iria para casa com eles. Ela pensou em dar uma boa resposta do tipo: nem morta me levariam. Optou pelo simples: acho que vamos todos a um rodízio de pizza.  "Típico", disse o padrasto. E foi um adeus.


Quem sabe no ano que vem conseguisse um emprego para continuar dançando. 2008 não a abandonaria. Poderia ter sido a última vez que subiria em um palco. Ou não.

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