Os três pontinhos
O livro de Maria do Carmo Campos e Martha Alves D’Azevedo, “Protásio Alves e seu tempo”, acabou resgatando uma figura interessante da história rio-grandense: …
O livro de Maria do Carmo Campos e Martha Alves D?Azevedo, "Protásio Alves e seu tempo", acabou resgatando uma figura interessante da história rio-grandense: Noêmio Ferraz. Tal como no livro, personagem fugaz de uma fotografia para ilustrar o texto, também assim ou pelo jornalismo por azares da vida, maiores ainda na sua própria vida porque foi amigo devotado e servidor fiel do governador José Antônio Flores da Cunha.
É claro que a biografia de Noêmio Ferraz não pode estar contida nas ironias estas poucas linhas. Foi entre nós um dos pioneiros da aviação, quando voar era um ato de bravura ou maluquice de estrambelhados. É, provavelmente, o primeiro protagonista e sobrevivente de um acidente aéreo no Rio Grande do Sul.
Sua participação no jornalismo foi fugaz, como se disse. Marcou época, entretanto. Flores da Cunha havia brigado com o Correio do Povo e o nomeara censor para controlar os "excessos" do jornal. Era o próprio retrato do peixe fora dágua. Sem paciência para ler os tijolões compostos em corpo sete, entrelinhados em sete pontos - era uma mancha cinzenta, soporífera -, Ferraz só cuidava realmente dos "cabeçalhos", como ele chamava os títulos.
O velho Correio era muito ruim de titulação. O medo obsessivo de editorializar o noticiário a tornava anódina, inexpressiva, verbos no condicional ou em infinitivos apenas insinuadores. O texto, sim, ainda que guardando as conveniências da linguagem, podia bater fundo com suas ironias. Cansado das constantes reclamações de Flores, estas quase nunca dentro das conveniências da linguagem, sobre as críticas ao governador, Noêmio exigiu da redação um "cabeçalho" que o elogiasse. Na sua cabeça de leigo, provavelmente instalou-se a idéia de que o título originava a matéria, não o contrário.
Noêmio devia ter desconfiado de tanta ividade: a exigência foi aceita com apenas um "sim, senhor". A submissão era tal que até lhe pediram para escrever o "cabeçalho" e rubricar o original. Preto no branco, para não haver dúvidas. Não titubeou. Lascou, em letras maiúsculas: FLORES É UM GRANDE GOVERNADOR. E rubricou. Acompanhou a composição do título, depois a paginação da matéria, esperou ansioso o primeiro exemplar na boca da impressora até as seis da manhã - naquele tempo, os jornais saíam com o sol - e foi correndo, feliz, exibir sua façanha no Palácio. Lá, Flores o esperava com palavrões de metro e meio. A redação tinha acrescentado reticências ao título - FLORES É UM GRANDE GOVERNADOR? - para transformar em piada, no texto, as autopropagadas façanhas do governador.
No dia seguinte, Noêmio Ferraz, censor do Correio do Povo, baixou ordem terminante: a partir daquele momento, era proibido no jornal, sob qualquer hipótese, "escrever três pontinhos nos cabeçalhos".