Os Ronaldinhos Gaúchos
Sempre com a pressa habitual, despencava pela rua da Praia que não tem praia a tempo de chegar às 14h na redação e pegar …
Sempre com a pressa habitual, despencava pela rua da Praia que não tem praia a tempo de chegar às 14h na redação e pegar as pautas diárias. Completamente aérea, pensava no tema da coluna que deveria escrever para o site. Já rompera a rotina ao não redigir o material na manhã de terça-feira, como é costume, para uma última revisada na noite. Muitas idéias turbilhavam na minha cabeça e eu não conseguia eleger a melhor. De repente, um trio de meninas radicalmente lindas, entre 15 e 17 anos, arrasou com a rapaziada na esquina da Ladeira. Percebi que o comodismo cerrou meus olhos para as coisas simples que encantam.
No curto espaço que faltava até o jornal, resolvi me ligar no movimento frenético das pessoas. As meninas, tatuadas, com piercing, de calça jeans abaixo da cintura, avam alheias ao que estavam produzindo. Graças a Deus, o doce requebrado delas evitou do moço chato do crédito fácil me enfiar o papel da propaganda sem consulta ao Serasa e ao SPC. Procurei a índia que sempre estava perto do ex-Imperial com seus indiozinhos e não achei. Mas, o homem que toca violão "maravilhosamente", perto da Caixa Federal, via encher de dinheiro a sua caixinha de sapato.
E a moça triste, juro, parou para ver, ouvir e dar agem. Do banheiro da Praça da Alfândega sai correndo uma profissional do sexo (muito chique e politicamente correto, concordam?) ajeitando a meia arrastão de cor preta que lhe cobre as coxas grossas. Foi retocar o batom vermelho vivo. Atravessa um senhor de meia-idade, de pasta de executivo na mão, que parece personagem de um filme de Hollywood, e começa a rodear a moça. Imaginem o final. Claro, seus bobinhos, o desenrolar desta cena não se ou ali. Só fiquei na torcida para ele usar camisinha e não ar nenhuma doença para a esposa que certamente estava em casa.
Antes de entrar na loteria do Shopping Rua da Praia e fazer uma apostinha semanal na quina, mega ou qualquer outro jogo, reparo que o homem que pinta retratos em tons pretos esfumaçados também permanece no mesmo lugar. Mas deu uma renovada nos modelos que usa como vitrine. Afinal, precisa se atualizar. Agora, tem os rostos da Cláudia Abreu e do cafajeste (o personagem), mas lindo e gostosão Marcelo Anthony, os dois da novela das 20h. Não sei se já habitavam aquele espaço e não notara. Espalhados sobre uma esteira de praia, uns 20 arinhos não de verdade em gaiolas feias de madeiras não paravam de piar.
Quanta vida pode ser descrita em 10 minutos? Quantos amores desfeitos? Quantos segredos guardados nos bancos da Praça da Alfândega? Quantos sonhos perdidos? E novos planos traçados? Quantos personagens que não fazem mais parte daquele cenário? E quantos novos se incorporaram? Quantas traições? Quantos retratos pintados? Quanto dinheiro ganha o violeiro? Como disse Olavo Bilac, às vezes, é preciso amar, pois só quem ama, pode ter ouvido capaz de ouvir e entender estrelas. Enfim, como existe poesia na simples rotina de percorrer o mesmo lugar com olhos mais atentos.
Com a certeza de que não havia perdido o senso por estar ouvindo estrelas, encontrei Jonatas e Clayton na primeira pauta da tarde. Os dois não aparentam mais do que dez anos. Vestiam roupas simples e surradas. Mas carregavam no olhar a esperança de um futuro melhor. São moradores da periferia de Porto Alegre. Por enquanto. Daqui a algum tempo, se tiverem talento para chutar, driblar o goleiro, podem ser novos "Ronaldinhos Gaúchos". E reescrever o destino que está reservado para a maior parte dos meninos que vivem em situação de vulnerabilidade social.
Jonatas é do Inter e Clayton é do Grêmio. No sábado, eles entram no estádio pela primeira vez para assistir a um jogo de futebol. "Ao vivo", exclamou Clayton. "Vai dar Inter", disse Jonatas. Eles, junto com mais 38 meninos integram um programa da Fasc e Banrisul, assinado ontem, que possibilita o ingresso de crianças nas escolas de futebol do Inter e do Grêmio, com transporte, acompanhamento, alimentação e um kit com o material para o treino. E só permanecem no programa se continuarem com bom rendimento escolar. Vale a pena abrir os olhos novamente e voltar a se encantar com as coisas simples.