Orgulho da mãe-pavão

Cansada que estou de dar murro em ponta de faca, seja defendendo um diploma pelo qual eu e milhares lutamos e hoje é papel …

Cansada que estou de dar murro em ponta de faca, seja defendendo um diploma pelo qual eu e milhares lutamos e hoje é papel higiênico na bunda de homens togados, seja tentando explicar que não é porque adoro a arte do Michael Jackson que vou defender os abusos que ele cometeu contra crianças, hoje resolvi falar de amenidades. Quer dizer, ameninadas porque envolve felicidade pessoal que ninguém tasca, embora seja um assunto dos mais sérios e consequentes: estou a poucos dias da graduação de minha filha. Agora, além de termos um compositor, guitarrista, arranjador e criador de jingles fabuloso, contaremos com uma arquiteta. Permitam-me me pavonear e, em o fazendo, me arrogo o direito de servir de porta-voz a todos os pais, familiares e amigos de formandos que adorariam fazer o mesmo mas não têm um espaço público para tal.
Esta pavonice se justifica já que, neste Brasil, o tal diploma é e ainda será, por longo tempo, privilégio de poucos, como todos sabem. Então, há que se comemorar e muito uma conquista deste calibre, com todos os rituais a que se tem direito, algo que me faz muita falta já que, por me ter graduado sob o período militar, a turma da Fabico de então optou por fazer formatura em gabinete. E a foto que ficou para o resto de nossas vidas mostra um grupo de gente de nariz em pé e se achando exemplo para o mundo quando, na verdade, esta burrice em nada ajudou a mudar coisa alguma. Só nos deixou e a nossas famílias sem os festejos a que todos tínhamos direitos. Águas adas.
Então, já sou praticamente mãe de uma arquiteta talentosa, dedicada, que tem dormido diariamente às seis da manhã para finalizar, no capricho, sua presentation. Entramos, neste final de semana, na fase-maquete, ou seja, muito energético, bolachinhas, chás e outros aportes em volta da mesa para ajudar a concluir a tarefa.
Tenho, em uma das prateleiras da minha biblioteca, a primeira maquete que ela fez, assim como guardei, com amor e carinho, as pranchas de estreia, tendo Porto Alegre como tema. Hoje, a mesa de desenho sustenta o computador do qual escrevo e a tecnologia, para o bem e para o mal (quando inventa de dar pau) substitui a figura do arquiteto debruçado com régua e como fazendo projetos. Coisa mais boa esta sensação - hein, Márcia Martins?
Assim como me encanta ouvir a voz de meu filho Lou Schmidt em comerciais que o Brasil todo ouve e suas criações musicais nos vídeos que canais abertos e fechados veiculam, abro minhas penas coloridas para saudar Manu, criadora de sonhos que podem ser construídos materialmente.
Quando estou à beira de um ataque de nervos (e quantas e quantas vezes repito isso!), olho para a galeria de fotos que cerca minha cama e revivo, o a o, as vidas que carreguei. Que cara de safado daquele menino gorducho de franja e braços cruzados, pronto para sair correndo e fazer uma boa arte! Que doçura naquele sorriso no rosto emoldurado por cachos dourados naquela menininha que era dengosa e cheia de personalidade. Ele me chegou no inverno, ela no verão. Fechei, portanto, o ciclo das estações.
O que mais se pode querer da vida a não ser que sejam bons cidadãos, justos e corretos, que se divirtam e comprometam na mesma medida, que construam sem destruir obras alheias, que nos superem a cada minuto porque, afinal, o que seria do mundo se as gerações não nos deixassem para trás? Por tudo isso, não há razão para falar ou sequer pensar em coisas desagradáveis, gente chata, situações- limite. Filhos meus: somos todos vencedores. E se nenhuma outra herança lhes posso deixar, deixo estas linhas tortas cheias de cores. Cores de pavão. De mãe-pavão.

Autor

Jornalista formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Maristela Bairros já atuou como redatora, repórter, editora e crítica de teatro nos principais diários de Porto Alegre, colaboradora de revistas do Centro do País e foi produtora e apresentadora nas rádios Gaúcha, Guaíba AM, Guaíba FM e Rádio da Universidade, assessora de imprensa da Secretaria de Estado da Cultura e da Fundação Cultural Piratini. É autora de dois livros: Paris para Quem Não Fala Francês e Chutando o Balde, o Livro dos Desaforos, ambos editados pela Artes & Ofícios.

Comments