O "x" do problema

Gastou-se a semana ada inteira, debatendo-se sobre a propriedade do mandato parlamentar. Em qualquer país civilizado, jamais a corte suprema teria perdido tempo com …

Gastou-se a semana ada inteira, debatendo-se sobre a propriedade do mandato parlamentar. Em qualquer país civilizado, jamais a corte suprema teria perdido tempo com o caso porque é da Constituição de todos eles, até mesmo dos menos civilizados, que o poder é do povo e em seu nome é exercido. Portanto, mandatos parlamentares não têm outro dono a não ser o eleitor, e por isso lhe são oferecidas todas as garantias para expressar livremente sua vontade no momento de votar.


Cá no Brasil, entretanto, o eleitor costuma sofrer metamorfoses, como os caracóis que mudam duas vezes de sexo ao longo da vida. Na hora de votar, ele é povo. Ao se rebelar com o destino dado ao mandato pelo eleito, vira populacho, cuja indignação não "deve" ser levada em conta quando está em jogo o seu maior patrimônio cívico, o voto.


O Supremo Tribunal Federal manteve-se dentro deste padrão ao julgar o pedido de partidos oposicionistas, para retomar mandatos perdidos na revoada de deputados rumo às pepineiras de hábito.  A decisão é exemplar: mude-se tudo o que não mudar coisíssima alguma. O mandato é dos partidos mas a regra só vale a partir do momento em que o Tribunal Superior Eleitoral assim o definiu.


O TSE nada tinha definido por óbvia razão: não tem, como qualquer outro tribunal, papel legislativo. Não faz leis, só as interpreta. Apenas reconheceu o dispositivo constitucional.


Também não define data de vigência porque isso é também constitucional - é a data da publicação. Está em vigência, pois, desde 1988.


Se as candidaturas só podem ser registradas dentro de legendas partidárias, o mandato é delegação do eleitor à legenda pela qual o deputado se elegeu. Qualquer perdigoto gasto nesse debate é puro desperdício.


A questão foi mal colocada no julgamento do STF, tanto assim que levou o ministro Eros Grau a argumentar com correção que não há punição prevista na Constituição para quem troca de partido. Só que não era caso de crime e castigo, mas de pura nulidade. Se o mandato é delegação periódica do eleitor ao partido, ao abandonar a legenda o deputado não leva o mandato consigo por não ter procuração como seu legítimo titular. Portanto, deixa automaticamente de exercê-lo neste momento.


De qualquer maneira, falta um dado essencial no debate É que o problema político brasileiro reside no sistema de voto proporcional para a Câmara Federal, introduzido na legislação eleitoral brasileira em 1933, junto com a representação classista, para eleger os constituintes de 1934.


Getúlio Vargas e o grupo de 1930 já engendravam, então, o Estado Novo. A instabilidade da República de Weimar (Alemanha), desembocando no nazismo, estava bem próxima. O sistema foi trazido para cá porque dificulta a formação de maiorias, torna precário o equilíbrio político e prepara a opinião pública para a ditadura.


O objetivo teórico do voto proporcional é impedir a ditadura de eventuais maiorias, cuja força bruta também é nociva. Acaba, porém, desaguando no extremo oposto: na prática, o governo é aprisionado como refém das minorias.


A situação foi descrita por Gandhi, logo após a independência da Índia: "(?) A corrupção também ingressou no Congresso (?) Era inevitável. As regras normais para a seleção de voluntários foram praticamente postas de lado, durante os estágios finais da luta.  O resultado foi que a corrupção se fez sentir em muitos lugares. Alguns líderes do Congresso foram ameaçados com o desastre, se não dessem o dinheiro que lhes era exigido. É claro que os corruptos profissionais sempre procuram tirar proveito das circunstâncias para exerce o seu ofício."


Parece escrito para este Brasil de hoje, com a ressalva de que o Congresso aludido por Gandhi nestas palavras era o seu próprio partido, o Congresso Nacional Indiano, até hoje predominante na Índia. Mas valem as palavras porque focam o "x" do problema: se lá o caso era o descritério na seleção de militantes, aqui é a orgia dos puxadores de votos.


A solução está no voto distrital, cuja hipótese ninguém levantou até agora. Mas já é outra história, como diria Kipling.

Autor

Jayme Copstein é jornalista, com atividade em jornal e rádio desde 1943,com agens pelos principais veículos de Porto Alegre. Trabalhou 22 anos no Grupo RBS como apresentador de programas e comentarista de opinião da Rádio Gaúcha, e atualmente é colunista do jornal O Sul e apresentador do programa 'Paredão', na Rádio Pampa. Detentor de vários prêmios, entre eles, Medalha de Prata (2º lugar) no Festival Internacional do Rádio de Nova York (1995), em 1997 publicou "Notas Curiosas da Espécie Humana" (AGE). Seu livro mais recente é "A Ópera dos vivos", editado em janeiro de 2008.

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