O vaivém de histórias

"… Pela turma da Biblioteca (adoradores da estátua de Minerva), no inverno de 1948.… Pelo verso "a sombra projetada na calçada é uma mutilação …

"? Pela turma da Biblioteca (adoradores da estátua de Minerva), no inverno de 1948.
? Pelo verso "a sombra projetada na calçada é uma mutilação que aceitamos"
 e por Mario de Almeida, seu poeta.
Pelo Bar Harmonia e por todos que lá estavam na noite em que Chico Alves morreu?"


(Trecho do Poema Aberto em "Bicho Alado", de Manoel Carlos)


Domingo, 14 de julho (queda da Bastilha), oito da manhã, subindo com minha dona a escada do clube, lá de cima o amigo e advogado Diniz Paiva grita:


- Na porta do Harmonia, heim Mario?


Sem entender nada (o bar Harmonia, em São Paulo , fechou há uns 50 anos), espero o Diniz continuar rezando a missa:


- Já leu o Manoel Carlos em "Veja Rio", hoje?


- Não.


- Então, leia. Ele conta umas histórias e você está numa delas.


- Obrigado.


Encontro o Maneco na última página da "Vejinha" que lembra duas histórias que eu conhecia e o inusitado final - que eu não conhecia - de uma delas.


Vamos começar pelo começo.


Há uns 30 anos, Maneco escrevia crônicas para a "Tribuna da Imprensa", Rio, e numa delas contou a história de um comunista que lhe foi apresentado por amigo e que destilava um ódio mortal a Walt Disney, a quem imputava "tudo de ruim que acontecia no mundo, a começar pela alienação que instilava nas pessoas desde a mais tenra idade".  E outra, do comunista que tentava instilar ódio ao capitalismo nos mendigos.


Bem, há alguns anos, comentando aquela crônica num e-mail para o Maneco, ele disse não se lembrar da mesma. Mandei uma cópia pelos Correios. Agora Maneco deve ter colocado ponto final no vai-vem dessas lembranças.


Antes de ar a palavra ao Maneco, peço licença para curtir a lembrança do bar Harmonia, coisa de alemão na Rua Xavier de Toledo, ponto central de São Paulo pelos idos de 1950, freqüentado por ele e outros da "turma da estátua", aonde eu também ia com outros amigos. Um pianista e um violinista, quando a gente chegava, nos recebiam com os acordes de "Lili Marlene". Jânio Quadros - professor e vereador - ia sozinho e, se inverno, carregava nos ombros de um casacão preto suas bem cultivadas caspas.


Escreve Maneco: "? Ah, agora também me lembro de uma história que me foi contada pelo Mário de Almeida, queridíssimo e velho amigo, sobre um sujeito que ficava na porta do bar paulistano Harmonia e, quando um mendigo se aproximava, na base do "uma esmolinha, pelo amor de Deus", ele não só recusava o auxílio como ainda ofendia o pobre coitado:


"Que esmola, que nada! Então você não vê que eu estou aqui, fazendo uma horinha pra tomar meu uísque e depois jantar? E você vem me atrapalhar, pedindo esmola? Quero mais é que você morra de fome e de frio, vagabundo!"


Era assim, me contou o Mário há muitos anos. E quando, inevitavelmente, alguém se espantava e mesmo se indignava com tamanha agressividade, ele justificava:


"Deixa comigo. Estou apenas plantando a revolta nele. Apressando a revolução".


Na crônica de domingo, Maneco conta que indo a São Paulo soube da morte, com 82 anos, do anti-Disney, cujo pedido, por escrito, foi o de ser enterrado com a bandeira da União Soviética, aquela da foice e do martelo.


Maneco conclui a crônica com a odisséia vivida pela família e amigos:


"A viúva, os filhos e alguns amigos se pam a procurar por um exemplar dessa bandeira, até mesmo no consulado russo, mas que não houve meio de encontrá-la. Então, já com o tempo curto, a hora do enterro se aproximando, dona Carmen, a viúva, reuniu as amigas do condomínio em que moravam e, juntas, bordaram precariamente a foice e o martelo num lençol. Colocado sobre o caixão, deu-se então o sepultamento. E lá se foi, terra abaixo, o comunista velho de guerra, ao encontro da possível igualdade entre os homens".


Dois adendos:


1. Em 19.07.2004 escrevi aqui sobre o Maneco e vou repetir trechos:


"Primavera de 1952. Tarde belíssima, São Paulo, Rua Xavier de Toledo, quase defronte ao Harmonia, saudoso bar alemão. Um casal auto-iluminado aproxima-se com sorrisos escancarados e eu pergunto qual o motivo da felicidade tão descarada. Manoel Carlos Gonçalves de Almeida aponta para a Lourdes e festeja: - "Acabamos de saber que ela está grávida?"


"? acabara de chegar um e-mail do Cyro sobre o significado da Páscoa e outro do Maneco, desejando-a feliz. Fui atropelado por lembranças e dei-me conta que o jornalista Maneco Jr., mês que vem, completa 53 anos. Lembrei-me, também, que os dois ícones mais populares da Páscoa são o ovo e o coelho, ambos ligados ao advento de novas vidas. Coube-me, em nossa fraternidade, o primeiro a ter notícia do advento do Manequinho, junto ao Harmonia, um dos nossos pontos de confraternização. 


2. Aqueles meus versos na epígrafe eram o começo de um poema muito ruim de 1955. Mais de 40 anos depois, convicto que a vida é um rascunho do sonho de vida, resolvi aproveitá-los numa confissão que - creio - não envergonha:


A sombra projetada na calçada
é uma mutilação que aceitamos.
(Como a vida, que também aceito).


Manoel Carlos está chegando hoje de Buenos Aires. E nossas crônicas, no ar, têm o gostoso gosto de comemoração fraterna.


Inté.

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Autor
Mario de Almeida é jornalista, publicitário e escritor.

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