O trem da amizade

Ao longo da vida, conhecemos muitas pessoas, algumas am por nós e, como ageiros do mesmo trem, descem na próxima estação e delas fica …


Ao longo da vida, conhecemos muitas pessoas, algumas am por nós e, como ageiros do mesmo trem, descem na próxima estação e delas fica uma vaga lembrança. Outras, seguem a viagem conosco. Com estas, temos a chance de conviver mais, nos estreitar. Dizemos que temos uma grande quantidade de conhecidos e poucos amigos. Os amigos são aqueles que nunca desistem de viajar conosco, no mesmo vagão, embaixo do peito.


É inevitável que alguns amigos e amigas de repente se afastem. Às vezes, amigos se divorciam e casam de novo, e não raro casam com uma mala, já que a metáfora aqui é trem. Pô, um cara tão legal, uma mulher tão bacana, com aquele mala, aquela mala? Sem alça, sem rodinha, grandalhão ou espaçosa, como é que se faz para segurar? Não faz nada. Nesses casos, quase sempre perdemos o amigo, ou a amiga, porque os novos eleitos se dão conta que não conseguem acompanhar um grupo unido há dez, vinte anos, ou mais. Lembro da estreia da namorada nova de um amigo divorciado. Quando alguém do grupo perguntou "como vai a vida?", ela respondeu, durante horas, e não nos poupou dos detalhes surrealistas. Quando deu sua exposição por concluída, o nosso amigo, seu namorado, estava deitado num sofá em posição fetal. Era brincadeira, e logo pediu uma dose de cicuta com bastante gelo, mas a moça se regenerou de público ao dizer que cicuta não era para o bico dele, era bebida de gente inteligente, como os grandes filósofos dispostos a morrer por suas crenças.


Excetuando as relações familiares, experimente riscar do mapa esses amigos e perceba como fica sozinho no mundo. Sua família vai te mimar como os amigos? Vai, mas mimo de família não vale, é garantido demais, não precisa fazer nada, e ainda assim sabemos de irmãos, primos, tios e sobrinhos que não se toleram. Sobram os amigos. Vocês se olham e começam a rir de nada. Amigo é só gentileza, é um vínculo fortemente amarrado em alegria e compartilhamento. Nossas relações muitas vezes são como a do carioca com o mar: ele não vai à praia todos os dias, mas sabe que o mar está ali.


Por que estou escrevendo sobre vocês, meus amigos? Sei lá. Acho que porque hoje senti saudades de todos. Não uma saudade babaca, senti que sem vocês eu não sou ninguém, senti uma saudade de urgência. Não vou dar nomes aos bois porque são muitos bois para pôr aqui, uns com guampas, outros sem, perderam-nas nos combates da vida, só sobraram os cotocos, eu mesmo perdi as minhas. Talvez nasçam outras, nunca se sabe. Mas a imagem do trem me agrada muito, o trenzão comum de todos, gente que sobe, que desce a cada estação. Acontece de um amigo imortal desembarcar para sempre, mas como? Este cara era imorrível, caraca, logo ele! Só depois é que descobrimos que ocupava um vagão inteiro, enchia um vagão de alegria, lealdade e verdadeiro companheirismo.


E quando o trem entra num túnel? Fica tudo escuro, mas os amigos continuam ali, uns brincando, outros te encorajando, todos te escutam, te dizem que estamos no mesmo trem, dentro do mesmo túnel que sempre tem uma saída, não existe túnel sem saída.


E lá vai o trem, nem sempre na velocidade que a gente gostaria, mas vai, avante, sempre avante, piuiiiiiii. A bordo surge uma festa, um toma um porre, outro declama poesias, uns cantam, surgem conversas de alta densidade existencial e significados de profunda relevância em que alguém responde que defende até a morte o direito do outro de oferecer uma réplica tão xoxa e sem imaginação, e o interlocutor sugere que ele feche a bragueta (zíper) antes de se pronunciar de forma tão solene. Alguém interrompe tudo e a todos e conta a última do papagaio. Piada velha, mofada, mas todo mundo ri e ri com vontade, não da piada, mas da cara e do jeitão do amigo, contando em sua própria linguagem que naquele momento ele quer ser amado, ainda mais amado. Mesmo que no outro dia a nossa memória apague rapidamente a lembrança do carinho de circunstância, o coração do amigo não esquece.


Avante, sempre avante, piuiiiiiiii? é o trem da vida, o trem maravilhoso vai partir de novo, todos a bordo, até a próxima estação, 2009 não vai nos trair (batam na madeira, xô baixo astral). Se pensamento positivo funciona, não vai trair mesmo.

Autor

Paulo Tiaraju é publicitário, diretor de Criação da agência Match Point, cronista e violeiro. Foi o primeiro criativo gaúcho a ganhar o prêmio Publicitário do Ano, concedido pela Associação Riograndense de Propaganda (ARP). É pai de Gabriel Nunes Aquino.

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