O Thales
A violência no Brasil parece não ter limites. Só neste final de semana, novos episódios da guerra dos traficantes no Rio, uma mulher morta …
A violência no Brasil parece não ter limites. Só neste final de semana, novos episódios da guerra dos traficantes no Rio, uma mulher morta ao fugir de um falso bloqueio policial, na frente do marido e dos filhos, bela mulher, por sinal, a julgar pela foto exibida à exaustão pela mídia. Teve também o rapaz morto por uma bala perdida em São Paulo ao voltar de bicicleta da casa da mãe, onde acabara de levar ovos de Páscoa para os sobrinhos. Ninguém sabe onde isso irá parar, tampouco o sabem nossos estômagos revoltos com tanta barbárie. Competimos com o Iraque no placar da carnificina. Ao menos lá a guerra é declarada.
A violência tem me tirado o sono. E isso que é só a violência mais explícita, socialmente inescapável. Tem ainda a outra, socialmente indesejável, por isso camuflada. Maridos que espancam a mulher são quantos milhões neste mundo? Ou irmãos mais velhos que estupram irmãzinhas que mal sabem contar até dez, quantos outros milhões? E pais que fingem não ver? E débeis mentais - só falta me exigirem palavras politicamente corretas - fortões em bando a intimidar quem se atreve a ser da paz, ou andar sem bando, ou a ser mais velho, ou a ser mais jovem? E o comerciante ameaçado? E os empregados humilhados pelo patrão? A grande discussão da violência é maior que ela própria. Começa e termina na opressão silenciosa, no medo de quem não pode sequer gritar, pois apanharia mais.
Difícil dormir em paz. São muitos os bandidos, maioria mesmo, por isso destinados a vencer. São poucos os heróis. Como o rapaz que, neste mesmo final de semana, em São Paulo, ao ver um homem ser assaltado ao sair de um caixa eletrônico, e ser baleado com a filhinha no colo e tudo, interveio, ofereceu o próprio carro aos ladrões em troca de deixarem o homem indefeso em paz. Conseguiu. Heroísmo urbano, pouco valorizado. Os bandidos não conseguiram, felizmente, às vezes a gente ganha, e foram presos em seguida. São poucos os heróis, muitos os opressores, martela a mente antes do adormecer. Lembro do Thales, um de meus poucos heróis verdadeiros, com nome e sobrenome: Thales Pires de Oliveira Júnior.
Tive uma adolescência, digamos, conservadora. Sem muitos amigos, namorada ou turma, muito menos gangue. A situação tornava-me frágil. Os opressores sempre foram muitos. Na escola, ou no centro comunitário, que era o clube dos periféricos, ou nas ruas do bairro depois do cair do sol, lá estavam os opressores. Pretensamente mais fortes ou corajosos, sua especialidade é oprimir meninos do bem, o que eu acho que sempre fui. Em muitas destas ocasiões, quando eu estava preste a ser agredido, quem sabe morto, pois é assim, banalmente, que as coisas acontecem, surgia o Thales.
Eu o via tomar satisfações por mim, sem que eu sequer pedisse, e sem que tivéssemos uma verdadeira relação de amizade. Não tínhamos, mas eu bem que queria. Ele era o fodão simpático, se é que posso classificá-lo assim. Era do bem, estava na cara. Não provocava ninguém gratuitamente, mas, provocado, metia medo mesmo nos opressores. Melhor não se meter com ele. Por alguma razão, sempre vinha em minha defesa, e me livrou de alguns perigos reais e imediatos. Foi um de meus heróis reais da adolescência. ei quase trinta anos sem ter notícias dele. Há alguns meses leu uma notícia literária a meu respeito nos jornais e me enviou um e-mail. Há muitos anos mora e trabalha em Torres, a única praia gaúcha que pode ser chamada de bonita. Ainda não nos reencontramos. Os compromissos profissionais não me têm permitido. Mas farei o possível para que aconteça em breve. Não é todo dia que reencontramos nossos heróis.
Eliziário Goulart Rocha é jornalista e escritor, autor dos romances Silêncio no Bordel de Tia Chininha e Dona Deusa e seus arredores escandalosos e da ficção juvenil Elyakan e a Desordem dos Sete Mundos. É Diretor de Redação da revista Forbes Brasil e escreve semanalmente neste site.
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