O silêncio dos deuses
O olhar mira o infinito, em busca da impossível explicação. A voz interior conversa com o vazio que acaba de lhe preencher. Quem sabe …
O olhar mira o infinito, em busca da impossível explicação. A voz interior conversa com o vazio que acaba de lhe preencher. Quem sabe Deus, ou Alá, ou divindades de quaisquer nomes possam escutar. Mas não. Os deuses estão calados agora, envergonhados de sua própria criação, impotentes, acuados. Ninguém responde. Ao silêncio dos deuses se soma a imensidão surda ao redor. Nenhum ruído. Seria possível ouvir a queda de um alfinete, caso a audição, como todos os outros sentidos, não estivesse fechada para a realidade. Um isolamento que o deixa a salvo do barulho das bombas, do cheiro de morte, da visão horripilante posta em seus braços, do fustigar dos escombros sob os pés. Pés que avançam céleres, embora seja tarde demais e o tempo, conceito sempre abstrato, agora não e de uma palavra sem sentido, como tantas outras, como todas as outras. Junções aleatórias de letras, sempre dispostas a trair seu significado. Amor, solidariedade, dor, perda, ódio, intransigência, violência, pedras, água, petróleo, alimento, dinheiro, vida. Palavras que se misturam já desprovidas de significados, perdidas em meio à mistura de fumaça, poeira e restos. Restos do que foi uma habitação, restos do que foi uma vida. A vida jaz ali, a poucos centímetros do olhar, mas este olhar já não faz questão de ver. Quem sabe se não olhando, o pequeno cadáver desaparece como por mágica. Quem sabe uma prece resolvesse, se ele pudesse falar. Se eles pudessem ouvir. Porque no espaço sem som, cor, odor ou substância que ele ora habita, as palavras não se propagam. Apenas pairam no ar, como os vestígios de um artefato mortal disparado por homens que agora celebram, enquanto outros homens se aprontam para disparar outro artefato em sentido contrário, já prontos para nova celebração. Um espaço de tempo infinito nas terras da dor infinita. O que são segundos de sofrimento diante de milênios de agonia. Mas agora a agonia é concreta. Está ali, estendida nos braços. Pior, nem agonia existe. Apenas o fim, a perda, o vazio, o grande e inescapável nada. Não há para onde olhar, não há quem possa escutar. Há apenas o avanço de pernas vacilantes sobre pedaços de concreto e pedaços de corpos. Não há como fugir. Não há para onde fugir. Não dá para evitar, tampouco reparar. Resta apenas vagar no limbo do choque antes que novas ondas de choque venham furar a camada de inconsciência. Pouco importa se é o pai da criança, um vizinho solidário ou um terrorista. Pouco importa de que lado veio a bomba, ou quais as razões históricas do conflito. Agora, enquanto o olhar busca a transcendência, só importa o pequeno corpo estendido nos braços. Só importa a espera desesperada por uma resposta.
