O segredo é o grid

Auto-promoção. A vida é uma paródia. Uma piada. Lobotômicos na imprensa. Chamem alguém: o Alienista. Estamos mesmo em um hospício. Essas são algumas conclusões …

Auto-promoção. A vida é uma paródia. Uma piada. Lobotômicos na imprensa. Chamem alguém: o Alienista. Estamos mesmo em um hospício. Essas são algumas conclusões que nossa heroína elaborou no pós-digestão de uma tarde ada em um seminário sobre design gráfico. Presentes, no palco, um a um, foram subindo os astros. Alguns baseados em expressão ingênua de sua própria experiência, honestos, senão pouco profundos, como Fu Lana colheu nos comentários, regados a café e bolachas, no intervalo.


Porém, a tarde apenas iniciara e os impropérios também. Os primeiros palestrantes surpreenderam. E acabaram com Fu Lana. Falavam de uma revista, cria sua. De uma revista que, através do projeto inicial, alcançara seis anos de sucesso. Não apenas dela, sucesso fulaniano, mas de um número que se aproxima a mais de uma dezena de profissionais.


Designers que contribuíram para fazer a "Cultura em Revista". Cultura gaúcha. Seis anos que os palestrantes apresentaram em duas lâminas hor-ro-ro-sas. Lâminas renegadas. Era como se estivéssemos frente à velha picaretagem que mostra retratos maquiados do antes e do depois, prática para convencer os trouxas. E trouxas éramos todos, na platéia. A revista fora desenhada por Fu Lana, em seu início, e obviamente tinha grid, regras, fontes específicas e princípios. Às vezes com duas e não sempre com três colunas, com liberdades implícitas e explícitas, sempre bem aproveitadas pela equipe de seguidores do amor bairrista pela cultura gaúcha e pelo design gráfico. No palco daquele seminário, lá estavam os dois novos designers, com muitos títulos (professores, coordenadores, mestres e o escambau). E Fu Lana, sem nome nem microfone, na platéia, encolhia-se no escuro. Ouvindo que seu projeto era duro, inoperante, e, no entanto, por seis anos deu à publicação, inclusive, prêmios regionais. Buenas, tchê. Tá certo que o design em seis anos deve mudar. Todo o designer sabe disso. Até em menos tempo. O que machuca e ofende é o maniqueísmo de dizer que o que havia antes era ruim e errado e nisso consiste a maldade, denominada por uns como amadorismo oportunista e arrogante. Pobre setor. Continua morrendo na praia. É o novo pelo novo. E os novos (nem todos) continuam inventando a roda. A sessão de datashow resumia-se em como o projeto anterior era horrível e como está hoje fantástica a revista. Com páginas "magistrais", conforme um dos palestrantes. Se ainda Fu Lana não os conhecesse, seria mais fácil assimilar a cacetada, porém tratou de acrescentar aspas aos novos "amigos". Resolveu ficar quieta e aproveitar o resto do seminário, ouvir opiniões, digerir o sapo.


A próxima exposição seria da Revista Void, com seus palestrantes pouco acostumados a platéias que não as das baladas. Engasgaram, deixaram murmúrios no ar, mas no datashow, surprise! Eles apresentaram processos de evolução do próprio projeto, com auto-crítica, confessando incompetência e, em algumas vezes, desconhecimento das regras. Curioso. Alternativos questionam os próprios caminhos e são humildes em relação ao resultado obtido. Afinal, a roda já foi inventada há algum tempo. Mostraram o grid da revista, construído depois de algumas edições livres. E afirmaram que com ele estão mais tranqüilos em relação à personalidade gráfica da revista que tem três designers, cada um com sua contribuição no processo de construção visual. O empirismo declarado foi questionado pela platéia, pois, na verdade, a Void está muito melhor estruturada em conceitos estabelecidos do que outras revistas consolidadas no mercado sob o ponto de vista do design gráfico. Criatividade no ousar, modificar ou bulir com parâmetros de comunicação são riscos que, nem sempre, designers e jornalistas estão em condições de encarar. Os guris trabalham por instinto e aplicam algumas táticas contra os ditames da legibilidade. Se por um lado, querem libertar a revista, e ousar cada vez mais (nem tanto quanto gostariam), por outro, querem aproveitar os benefícios estruturais que só a técnica bem aplicada pode trazer: o tal grid, as fontes utilizadas para marcar e apontar a personalidade do produto junto a seu público que, em contraponto, está sempre em mutação. O santo graal do design editorial a a ser: manter uma personalidade para o consumidor (mais modernamente, consumidora) em constante mudança.


Os voidianos fizeram o contrário dos superstars da primeira palestra que não falaram em como estruturaram suas páginas, que apenas citaram as "inovadoras colunas falsas", criadas em 1950, e a psicodinâmica das cores, que o veteraníssimo Joaquim da Fonseca lembrou como um dos pontos risíveis dos primeiros momentos do evento. É o truque de apresentar elementos básicos como novidade. A revista Senhor fazia mais, melhor e há muito mais tempo. Quando a Ética fazia parte do vocabulário profissional.


Que dicotomia. Os alternativos querem buscar o caminho lógico. Pasmem. Foi-se o tempo em que eles eram assim e dane-se o resto. Os ditos errados estavam certos e deram aulas aos mestres. Aulas de conhecimento e de instrumental técnico.  


Na platéia, havia alunos do curso técnico do Senai, de onde podem sair gráficos ou designers. O professor do curso dizia, entre uma bolachinha e outra: depende deles a dimensão do resultado.


Enquanto se preparava para subir ao palco o representante do Jornal O Sul, Fu Lana implorava por uma dose de cicuta. Sua cabeça ia estourar. E essa tarde ainda estava no meio. Foram muitas novidades para uma temperatura de dez graus no sul do país.


O Jornal O Sul é realmente um case a parte. Para começar, ele traz pontos finais nas chamadas. Sejam elas com ou sem verbo. Mulheres assassinadas. Ponto. É ele. Ponto. Lula no aerolula. Ponto. Deveria ser O Sul. Ponto.


O brilhante executivo (representante dos diagramadores, que deviam estar baixando o jornal e não puderam vir falar de design gráfico para designers), trouxe-nos pílulas fantásticas. Ele apresentou no datashow, gabando-se da inovação e do risco, fotos gigantescas de capa, elemento que é característica do jornal. E explicava o processo: alguém ficava comprando fotos do mundo inteiro, durante o dia, que eram publicadas na internet pelas agências. No final da tarde, o brilhante staf, do qual ele fazia parte, escolhia a foto mais legal plasticamente, para brindar aos leitores. Não importa de onde a foto era originada ou sobre o quê. "Temos esse recurso", dizia ele, "e vamos apresentá-lo. É uma revolução estética". O jornal, em seus milhares de exemplares diários, prosseguia então estampando touradas (com direito ao último golpe do toureiro, com jorro do sangue do touro), ou filas de soldados orientais onde há um que boceja, ou o Papa ou o Bush ou ainda o príncipe de um país distante, em uma cena curiosa.


Esclarecimento: é um jornal regional. Um gaiato arriscou: por que abrir dessa maneira uma foto dessas? A resposta: porque são belas. E, pasmaceira: as fotos vinham expostas sem conexão com o interior do jornal, sem nenhum conteúdo que as justificasse. E o executivo simplesmente apontava que o critério era a plasticidade e a "sacada" da foto (estalando os dedos) que indicavam sua posição na capa. No entanto, devido a alguns telefonemas de leitores (dois leitores), eles resolveram colocar legendas para justificar a publicação. Claro que a chamada de capa, do assunto que é realmente a matéria de capa, não tinha nada ver com a foto enorme, mas a legenda sim, atendia ao leitor com o link cerebral necessário. Um minuto, por favor!


Fu Lana, do alto de sua graduação na Famecos, pensava: uma tourada em Porto Alegre? Quem sabe aquele soldado chinês que bocejava tinha sido fuzilado, ele e a família toda, para ter virado chamada de capa? Não. É a lobotomia gráfica e editorial de plantão.


Ninguém pergunta, mas comenta-se: por que as matérias são editadas dispersas, quase sem editoria? Quase como se estivesse ouvindo o murmúrio coletivo, explica o executivo que há um software no jornal em que as agências vão lançando os assuntos comprados e que o diagramador vai "pegando" e paginando. Quer dizer, vai preenchendo espaços conforme o tempo vai ando. Fu Lana pensou, naquele momento, em mudar de profissão. Ser cabelereira, pedicure, faxineira. Sem ofensa a essas profissões, mas, se era para ser lobotômica, pelo menos o faria ouvindo um radinho e cantarolando, se divertindo, pensando em outra coisa. Sobre projeto gráfico? Ouvimos uma enrolada que não acrescentava muito à tarde.


A próxima palestra, e última (graças a Deus), era da equipe da Zero Hora. Equipe por assim dizer, porque o guru Luis Adolfo é um mestre daqueles que detestam aparecer. Na contramão da absoluta auto-promoção a qualquer custo, idéia que campeia em nossos pagos.


Foi bem feita a palestra. Com todos os salamaleques a que o público tem direito e às vezes dispensa. Daniel Dias apresentou o projeto gráfico, o grid, a auto-crítica, a evolução e a nova nomenclatura utilizada pelo jornal. Agora na RBS, o diagramador é designer. E na equipe de 20 profissionais, 18 são jornalistas e dois já vêm da área do design. "Estamos aprendendo com elas", dizia o chefe da diagramação ao mostrar um leve constrangimento ao dizer, "nós, designers".


Pelo jeito, o design vai tomar conta da diagramação e não vai demorar muito. No entanto, é bom que os futuros designers comecem a perguntar em seus bancos escolares, assim como o fizeram no seminário, o que é cartola, destaque, subtítulo, etc. E confessem, como os nossos skatistas preferidos, incompetência e vontade de evoluir. Caso contrário, será um show de empáfia.


Fu Lana estava cansada e já queria estar no dia seguinte. No ano seguinte, na era futura. Dito e feito. Pegou sua pastinha e, em um disco voador, retornou ao lugar onde não havia designers, diagramadores, jornais, revistas, fanzines ou fliers: em sua própria cama, com os olhos bem fechados.     

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