O Resgate

Chegou em casa, foi para a pasta de documentos, apanhou sua certidão de solteira, uma de casamento e juntou as duas com uma outra …

Chegou em casa, foi para a pasta de documentos, apanhou sua certidão de solteira, uma de casamento e juntou as duas com uma outra que acabara de trazer do cartório. Pegou as coisas que trouxera numa bolsa e ou-as para outra pouco maior, mais a carteira de identidade, de motorista, F, o talão de cheques e cartões de crédito.
Sentou-se na sua poltrona favorita e, suspirando, foi mentalmente jogando para o lixo coisas que estavam sujando o córtex. Ficou pensando se toda aquela sujeira abstrata ainda teria um lugar no planeta ou seria expulsa do sistema solar por um processo universal e automático de destinos específicos. Sentiu que estava se despindo do mal e se aproximava do Nirvana.
Nirvana, não, pensou. Quem sabe um Nirvana que despoje de tudo, menos do ódio? O ódio, sim. O ódio tinha nome e sobrenome. Sobrenome? Levantou-se, alcançou o telefone, falou com seu advogado, voltou a sua poltrona e suspirou. O advogado confirmara o que teria que fazer, decidiu que seria no menor prazo possível, olhou o relógio, levantou-se e preparou-se para o banho.
Enquanto deixava que a água do chuveiro escorresse livre pelo seu corpo, associou aquele banho a uma metáfora existencial, uma limpeza na vida, a volta a um ado, um ado não-temporal, mas a um ado de sua vida, de outros tempos existenciais.
À vitalidade com a qual esfregava a toalha azul pelo corpo, juntou-se a alegria de perceber que os tempos mal vividos não se incorporaram ao físico; pelo contrário, como combatia a depressão com os exercícios na academia, o mal lhe fizera bem.
Estava nova no exterior e sabia que resgataria tudo do antigo por dentro. Girou o dial da memória à cata de uma música para cantar, mas que expressasse aquele estado de espírito. Deu de ombros, percebeu que há momentos que se bastam.
Abriu o guarda-roupa e escolheu um vestido estampado que não usava havia muito, nem se preocupou se estava na moda; a moda, para ela, atualíssima, era o seu estado de espírito.
Já pronta, apanhou a bolsa com as certidões, as chaves do carro e, ao sair, bateu a porta. Sorriu ao pensar que se dirigia para bater a porta do seu ado mais recente e caminhava em busca da identidade perdida.
Na bolsa, a certidão de nascimento, a de casamento e a do divórcio que, horas antes, trouxera do cartório.
No carro, a caminho do banco, percebeu que nunca dirigira naquela velocidade tão baixa. O resgate total da identidade perdida seria gradual, sabia.
Acelerou.
 

Autor
Mario de Almeida é jornalista, publicitário e escritor.

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