O relógio chinês
Por Flávio Dutra

- Só falta falar, - exclamei, maravilhado com o relógio cheio de funções, um dos mimos recebidos pelos meus 7.5.
- Mas ele fala, porque recebe ligações do celular,- esclareceu meu filho Rafael, doador do complexo registrador do tempo e algo mais.
Sou do tempo em que os relógios marcavam as horas, os minutos e os segundos e, no máximo, o dia da semana. A gente precisava dar corda para ele não desregular e de vez em quando acertar os ponteiros, literalmente.
Já cursei um MBA de comunicação digital, mas continuo analógico, ou imigrante digital para ficar na terminologia dos geeks (agora já estou me exibindo), por isso sou obrigado a confessar minhas limitações no mundo digital, onde se insere o mimo recebido.
Entretanto, não me rendi à barreira tecnológica, ao contrário, me senti desafiado a decifrar os meandros do relógio, que parecia desdenhar da minha inabilidade e incompreensão para o funcionamento dele. Sim, só podia ser desdém a mensagem que ei a receber dele quando participava de reuniões, algo como "muito tempo sentado, está na hora de se movimentar".
Resiliente diante da situação, fui ao manual na tentativa de expandir meus conhecimentos. Inútil tentativa: as letras eram tão pequenas e em idiomas que não domino - sânscrito, cirílico, aramaico? -, que acabei desistindo. Mais tarde, acabei descobrindo que se tratava do certificado de garantia da peça. Descobri também que essas modernidades não vêm mais acompanhadas daquela cartelinha com as instruções sobre o uso, que devem ser procuradas num app ou no site do fabricante, aumentando as dificuldades para os imigrantes digitais, também conhecidos como analfabetos digitais.
Apelei novamente ao meu filho, que fez a conexão do relógio com o celular para um dispositivo de saúde, que controla a pressão, batidas do coração, registro de exercícios e até bem estar emocional e o resultado é que agora estou sem saber ar as funções tanto no relógio como no celular.
Por fim, entreguei os pontos e ei a usar os ditos cujos nas suas funções originais, porque constatei que o relógio e celular ficaram mais inteligentes e eu menos,
Depois de todos os fracassos nas empreitadas com o relógio-mimo, fui verificar a origem do enigmático equipamento e não deu outra: Made in China. Ou seja, os chineses não satisfeitos em terem o amplo domínio da Inteligência Artificial, partiram para a perversa humilhação aos pobres mortais que utilizam suas quinquilharias. Provavelmente estão registrando todos os meus dados para alguma ação malévola no futuro. Ou me confundirem com o Trump para alguma retaliação aos tarifaços. Chamaria isso de assédio digital, a merecer repúdio e penalidades das outras lideranças mundiais.
Aos familiares, um apelo: não me presenteiem mais com essas gerigonças; voltem aos vinhos, aos pijamas e às camisas azuis.