O pai de todos

      Meu pai não era homem de muitas posses, e os bens materiais que deixou já foram mais do que se poderia esperar de uma …

      Meu pai não era homem de muitas posses, e os bens materiais que deixou já foram mais do que se poderia esperar de uma vida de muitas lutas e poucas oportunidades. Mas há também aquela parte do legado de baixo valor econômico e alto significado afetivo, a qual inclui uma coleção de fitas de vídeo. Boa parte delas reproduz filmes antigos, muitos de guerra ou de cow-boy (odeio a grafia "aportuguesada" caubói), mas há também dezenas de "reportagens" realizadas por ele com pessoas da família, vizinhos etc. Ele não se limitava a filmar, mas também narrava. À sua maneira, com técnica e impostação da voz bastante peculiares, embora tenha sido locutor da fase áurea da Rádio Clube Metrópole, enquanto minha mãe cantava no Clube do Guri, do Ari Rego, ou no programa Maurício Sirotsky Sobrinho, no Cine Castelo. O áudio de tais fitas muitas vezes deixa transparecer o efeito de várias caipirinhas ou, ultimamente, de algumas cervejas, mas o resultado acaba sendo um interessante retrato das gentes e modos do interior de Goiás, onde ele, paulista de nascimento e gaúcho temporário, decidiu viver os últimos, e, provavelmente, melhores anos de sua vida, depois da aposentadoria como funcionário público federal.
       Ele adorava Goulart de Andrade e seu Comando da Madrugada, há incontáveis madrugadas atrás. Com a câmera na mão sentia-se, certamente, como o apresentador que criou um estilo muito próprio, copiado aos magotes e sempre para pior. Eu também simpatizava com a informalidade de suas reportagens, sempre entremeadas com o bordão "vem comigo, vem", mas acho que só fui entender o real significado de seu sucesso quando compreendi a importância dos vídeos de meu pai. Goulart e meu pai, que não era Goulart, este veio de minha mãe, mas apenas Rocha, ou Rochinha, cada um à sua maneira, estavam se comunicando com o povo e nos dizendo que informalidade nem sempre é brega, ou, quem somos nós para dizermos o que é brega, ou, se achávamos aquilo brega é porque jamais imaginávamos no que se transformaria a televisão brasileira.
      Depois de ditar o modelo, Goulart de Andrade, o pai de todos os repórteres-informais-de-fim-de-noite, simplesmente sumiu, quem sabe por falta de competitividade diante de tantos modernos, afinal, quem iria querer um homem já entrado em anos e sem grandes atributos físicos? Não a nossa TV, com certeza. Ou quem sabe ele caíra fora desiludido ao perceber o quanto seus imitadores se levavam a sério e, pior, o telespectador acreditava.
      Na impossibilidade de reencontrar meu pai, fiquei feliz ao reencontrar Goulart de Andrade nas madrugadas. Aos 67 anos, idade de meu pai ao morrer, seu jeito informal de nos contar histórias, não enquadrável talvez nos manuais das grandes redes, mas bastante eficiente, remete a tempos mais simples, a uma TV menos técnica e mais humana, a um país mais real, e não aquele habitado apenas por jovens belos e malhados, numa negação de uma realidade de pessoas tornadas feias pela pobreza, de semblantes precocemente vincados e sem esperança. Ocasionalmente são exibidos programas politicamente corretos, só para informar que sim, eles reconhecem a existência do Brasil real. As reportagens do agora septuagenário Goulart de Andrade primam pela autenticidade que os protagonistas dos vídeos de meu pai agradecem.
Dedicado a Goulart de Andrade e Eliziário Rocha (1933-2000)
( [email protected])

Autor
 Eliziário Goulart Rocha é jornalista e escritor, autor dos romances Silêncio no Bordel de Tia Chininha, Dona Deusa e seus Arredores Escandalosos e da ficção juvenil Eliakan e a Desordem dos Sete Mundos.

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