O olé de cada dia

O Sul do Brasil e o Flamenco têm uma conexão. Talvez pela força da dança, própria para quem precisa sapatear nas fronteiras, um lugar …

O Sul do Brasil e o Flamenco têm uma conexão. Talvez pela força da dança, própria para quem precisa sapatear nas fronteiras, um lugar de limite, invasões e fugas, em um convívio de eterna disputa de beleza ou um duelo amistoso. Como a dança flamenca.


As prendas gaúchas tudo têm a aprender com as espanholas, principalmente a sensualidade explícita, em decotes e saias coloridas. Com liberdade, o melhor da mulher transparece. A postura altiva do flamenco equivale ao sentimento trágico e profundo dos cantos.


Porém, a prendinha sempre anda aquém da bailarina espanhola, com seus inhos singelos e recatados, em golas que chegam ao queixo, terminando em rendinhas puritanas. Na revolução feminina, nada mais adequado que a vigorosa presença flamenca que exige auto-estima e confiança.


Existem dezenas de grupos flamencos, só aqui, na Província. Muitos abrigam guris e gurias que procuram deixar de lado a timidez, que buscam o amor por si mesmos, perdidos atrás de um aparelho nos dentes, um desengonçar clássico da idade, uns quilinhos a mais ou a menos. Vêem-se em palcos, praças e shoppings centers os grupos de gentes mais variadas que arriscam aquele bailado de queixo alto e palmas marcadas.  Todos demonstram alegria e vontade de viver.


Em apenas alguns dias, mesmo que não procure, as pessoas tropeçam em grupos de dança espanhola. É época de mostrar a que vieram as academias e surgem os eventos públicos para mostrar a produção. Essa é uma forma de expressão do Sul, com certeza. No entanto, em meio a tanto diletantismo, encontram-se alguns profissionais que valem a pena. Meninas lapidadas por muito trabalho em salas de aula, obviamente.


É o caso o grupo de Sílvia Canarim, que apresenta a peça de "danza-teatro-flamenco" A Casa, contando a história de Bernarda Alba, em roteiro de Federico Garcia Lorca. Eis um bailado importante. Quem já aprecia a superficialidade festiva com que se apresentam diversos grupos de dança espanhola, vai entender a qualidade do grupo de Canarim. Conseguimos compreender facilmente de onde vem a tragicidade da dança flamenca, do que se pode imaginar que sejam, em uma linguagem chula,  as entranhas da bailarina. Todo aquele esforço em expressar, para libertar-se da censura imposta pela família ou pela sociedade. O sapateado em A Casa tem significado, é voz, canta e chora. A gente entende o que ele diz. As mãos têm vida própria e arranham o ar, como se houvesse algo querendo sair de dentro do corpo pela ponta dos dedos. O teatro faz com que as meninas ganhem outras personalidades e percam aquelas carinhas autômatas que reproduzem os da iniciante Sevilhana. O mérito deve ser do diretor Décio Antunes. A dramaticidade é alcançada também pela cenografia, pela casa em si, em construção, que virá a ser o complexo da sede local do Instituto dos Arquitetos do Brasil. Outrora servira de ambiente policial alojando o Doi-Codi. Pode-se imaginar o ar carregado de certos ambientes.


Acostumado a presenciar bailados, o povo comum até sente falta de mais dança ao assistir A Casa. É por puro bom gosto. O elogio é geral. Quem sai comenta: "que pena que acabou, poderia haver um ou dois solos a mais, porque as meninas são de tirar o fôlego".


Em uma outra tarde cotidiana, o Grupo Tablado Andaluz apresentava-se em um shopping lotadinho em nome do convívio social. No subsolo, um ex-presidiário era fuzilado por desafetos. Isto não vem ao caso, mas exemplifica que, na parte de cima, alunas bailarinas, nervosas procurando não errar, atuavam como espanholinhas, desafinando a Sevilhana. Na parte de baixo, a verdadeira tragédia, um corre-corre e total desinformação. É o mix do entretenimento gaúcho.


Não há comparação entre um balé e outro. Seria como comparar prendas e bailarinas clássicas. O sapateado em um espetáculo acontece quase em em câmera lenta, demonstrando o domínio e o controle dos os. Em outra companhia, apresenta-se um sapateado aeróbico, feito de força física, sem um pinguinho de sentimento ou, ao menos, uma proposta clara. Tudo em nome do consumo frívolo e ageiro.


Por fim, à noite, indo ao teatro, pode-se apreciar Ana Monteiro, solista de dança flamenca no espetáculo Conselheiro Matrimonial, com monólogo de Miguel Ramos, em texto hilariante. Coragem de Ana ao enfrentar sozinha o palco, às vezes, em sapateado à capela. O resultado é um misto de ironia e verdade, em que a dança ora é graciosa, ora uma ilustração incômoda de uma aula-palestra-show de um consultor matrimonial muito engraçado. Rimos, na verdade, da tragédia que é o casamento, apresentado em definições cruelmente verdadeiras. Ana vai sempre bem, mas não se sente totalmente à vontade. Falta a vibração da artista despreocupada com a técnica, que faça gente flutuar em imaginação. Com tanto Flamenco, dá até para escolher a fantasia. Enfim, bailar para esquecer.

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