O Leão de Chácara

Depois de um período afastada do exercício diário de cumprir as pautas para a elaboração das mesmas, com pitadas de bruxa malévola (ah.ah.ah…risada sinistra), …

Depois de um período afastada do exercício diário de cumprir as pautas para a elaboração das mesmas, com pitadas de bruxa malévola (ah.ah.ah?risada sinistra), tive a sorte de pegar um plantão no sábado, o que me permitiria acompanhar, sem estar vestida de jornalista, o domingo do povo nas urnas. A oportunidade para respirar democracia, ou o que conhecemos como sendo democracia, por todos os poros. Como devo ser a única maluca deste país que assiste o programa eleitoral gratuito, esperar que o futuro do Brasil seja decidido com um apertar da tecla verde não me levará para a camisa de força.


Como de boas intenções, o inferno tá cheio, enfrentei alguns defensores da ditadura no meio do meu caminho. Tudo começou no sábado, quando na loucura do plantão matinal, senti a minha privacidade democrática invadida, ao ser importunada na redação por uns 20 telefonemas de uma candidata pedindo o meu voto. Fala sério. Se foi estratégia de marketing, pareceu desespero de última hora. Será que ninguém no comitê da referida conhecia, ainda que superficialmente, o funcionamento de uma redação, a loucura das pautas, o deadline ? Certamente, não programaria tal gravação para os telefones da redação às vésperas da eleição.


Para alguns, mais humildes que imaginaram que a própria deveria estar ligando, talvez a estratégia tenha funcionado. Pois não é que a minha tia tinha uma "auxiliar doméstica" (politicamente correto) que respondia sempre ao boa-noite do Cid Moreira no tempo em que ele apresentava o Jornal Nacional ? Às vezes, o povo gosta, fico a imaginar, que é mais do que uma peça do coletivo inconsciente. Viu ? Quem disse que jornalista sabe tudo e que está sempre com a razão ? Sabe-se lá quantos votos foram conquistados com essa estratégia ultraada de se fazer muito íntimo do eleitor na última hora.


No domingo, levantei com um aperto estranho. Uma sensação de que seria preciso reconstruir algumas idéias. As buzinas insistentes de eleições adas estavam roucas, sem força. As bandeiras das duas candidaturas apareciam carregadas por militantes aguerridos e por "militantes de aluguel". E não adianta disfarçar. Só quem já agitou com força e com esperança uma bandeira ou causa partidária, percebe, de longe a diferença. Não tinha as matizes de um domingo de eleição, em que o simples apertar de uma tecla eletrônica confirmaria o nosso voto para o presidente da República e governo do Estado.


Apesar de um cenário pouco confortante, precisava exercer a minha cidadania e votar. Não poderia adiar mais. O relógio marcava quase 15h30min. De mão com a Gabriela (minha filha), as duas carregando alguma ideologia nas suas bandeiras, dirigi-me ao meu local de votação, a menos de duas quadras do meu lar doce lar, com a intenção declarada de retornar após o voto e acompanhar a apuração em casa. Emocionada ao encontrar o Didi, jornalista e ex-colega de ZH, que adoro muito, caprichei no abraço amigo e deixei a Gabriela cuidando das bandeiras para  votar.


Pois uma fiscal da candidatura que nossa bandeira denunciava  não ser a nossa preferida, postou-se ao lado da Gabriela como um  "Leão de Chácara" e quase intimidou a minha pequena militante com seu olhar de fúria. Dever cumprido, ficamos uns cinco minutos paradas na sinaleira em frente ao colégio decidindo se voltaríamos para casa, se cederíamos a um sorvete, ou se caminhávamos mais um pouco enquanto a idéia não se consolidava. Não deu tempo. O "Leão de Chácara", agora acompanhado do "Dono da Floresta", aproximou-se e disse: "não pode ficar aí, tá fazendo  boca de urna".


Nova lei eleitoral, novos tempos, nova forma estranha de abordar as pessoas. Maneira estúpida de se mostrar divergência. Palavras nada educadas para serem ditas a uma menina que está pré-adolescendo, mesmo que já seja uma militante. Não sei. Uma forma pouco usual e nada porto-alegrense de tratar as pessoas. Mas a gente sabe que a truculência não vence todas e nem sempre. E que o ser humano deixa de ser escravo, quando  se transforma no arquiteto do seu próprio destino. Assim pensava Che.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve agens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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