O homem que lembrava

Por José Antônio Moraes de Oliveira

O russo Solomon Shereshevsky era um homem extraordinário. Dotado de uma memória prodigiosa, acabou pagando um alto preço por isso. Nos anos 30, ficou famoso como "O Homem que não Esquecia" e foi objeto de estudo e experiências conduzidas pelos maiores neurocientistas da época. Mas ao mesmo tempo,Solomon tinha grandes dificuldades em reconhecer rostos.

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A maioria de nós guarda na memória os rostos das pessoas conhecidas; e quando enxergamos alguém que conhecemos, nossos mecanismos mentais identificam pessoas, comparando seu rosto com o catálogo de rostos que temos armazenado. Masa incrível memória de Salomon Shereshevsky era capaz de guardar cada mudança nos rostos que visualizava. Assim,a cadavezqueum conhecido mudavaaexpressãofacial - sorridente, triste ou apática - sua memória arquivava todas as versões daquele rosto. Assim,para ele, aspessoasnão tinham apenas um rosto,masdezenas, centenas.Equandoencontravaumconhecido, a mente de Salomon ia em busca  daquelerosto nas imagens arquivadas namemória. O que significava uma incessante - e torturante - procura do rosto da pessoa - ou pessoas - que estavam à sua frente. 

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Mas para compensar suas dificuldades em identificar amigos e parentes, Salomon Shereshevsky foi reconhecido como o primeiro caso de hipermnésia - excesso de memória cognitiva - da medicina moderna.ou por testes complicados, onde era forçado a memorizar fórmulas matemáticas complexas e poemas em vários idiomas. Para espanto dos médicos, ele não apenas decorava o que lhe era apresentado, como repetia tudo em ordem inversa. Um psicólogo que estava presente aos testes, voltou a visitar Salomon 10 anos depois,confirmando que ele repetia com facilidade números, textos e poemas da sessão inicial. E ainda relembrava os diálogos e a roupa que o psicólogo usava:

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"- Você estava sentado em uma cadeira de balanço. Usava um terno cinza com colete e olhava fixamente para mim. E lembro das palavras que você disse...".

Depois do diagnóstico dos cientistas, Shereshevsky pensou que podia ganhar a vida e ficar rico se apresentando como "O Homem que Lembrava". Deixou o emprego no jornal onde trabalhava e vai se apresentar nos bares e clubes de Moscou. As platéias oaplaudiam entusiasmadas, exigindo desafios cada vez mais difíceis. Mais tarde, ele excursiona pelo interior da Russia, com enorme sucesso. Mas o sonho não durou muito.

Aos poucos, Shereshevsky percebe uma crescente sinestesia, quando todos os cinco sentidos se misturam. Relembrar ou a ser mais difícil, com as palavras assumindo cores, sabores, formas e cheiros. Ele não mais consegue esvaziar a memória  e chega um ponto em que ele nem consegue relaxar nem desligar o fluxo de informações que absorve sem cessar. Qualquer som, palavra ou rosto desencadeia uma torrente de lembranças do que havia acontecido em seu ado. 

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Atormentado, "O Homem que não Esquecia", desiste de se apresentar em público e vai trabalhar como motorista de táxi em Moscou. O homem que tinha a mais fenomenal memória da história morre em 1958,anônimo e esquecido de todos.  

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem agens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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