O Herói

Por José Antônio Moraes de Oliveira

Eu tinha orgulho de minha coleção de gibis que guardava no quarto dos fundos da nossa casa na Vasco da Gama. Era meu refúgio para onde eu escapava logo depois de fazer as lições de casa. Ali havia uma cama de ferro que rangia, uma mesinha, baús e caixas de madeira. Em uma delas, com a estampa de um castelo, eu arrumara os gibis mensais e os almanaques do Super Homem, do Tocha Humana e do Fantasma Que Anda. E brincava de pensar que um dia eu realizaria façanhas como aqueles heróis.

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O Eurico era o menino mais alto e o mais forte do ginásio Ele e sua turma faziam ponto na parte baixa da Felipe Camarão e sua diversão era dar cascudos nos guris da vizinhança ou dizer gracinhas para as meninas.

Por cautela - e mais por medo - para comprar pão na Padaria Tres Estrelas, eu usava outro caminho, dando volta pela Fernandes Vieira, evitando encontrar o Eurico e sua turma. Os meninos da nossa esquina também evitavam ar por lá, pois não tinham coragem de comprar briga com aqueles valentões. Nossa pequena vingança foi apelidar o Eurico de Coelho Dentuço, pois ele tinha os dentes da frente saltados, parecendo um coelho de páscoa. Mas quando o apelido pegou como coqueluche, ficamos com mais medo ainda do que faria  o dentuço Eurico. E dando mais voltas pelo bairro para fugir da Felipe Camarão. Foi quando minha mãe notou que eu demorava mais tempo na rua do que devia e logo viu que alguma coisa estava fora do lugar. Me encarou com seus grandes olhos negros, não disse nada e foi conversar com meu pai.

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Uma noite, após o jantar, ele me chamou para junto dele. Desligou o Telefunken e quis saber como andavam os estudos. Gaguejando, disse que estava tudo bem, mas eu sou um péssimo mentiroso. Acabei contando de meus medos, enquanto ele tentava ficar sério, sem esconder um meio sorriso. Quando acabei de desabafar, ele me olhou de perto, dizendo que medo era uma coisa normal, mas que preferia me ver chegar em casa com um olho roxo do que saber que eu andava fugindo.

No dia seguinte, levantei cedo, tomei o café-com-leite com pão-com-manteiga, dei um beijo na mãe e saí à rua. Era um dia de sol, respirei fundo, sentindo que o medo ficara para trás. Na saída do Rosário, escolhi o caminho antigo, pela Felipe Camarão. Ao dobrar a esquina, avistei o Eurico fumando escondido atrás de uma árvore. Sem pensar, pulei em cima dele acertando um soco na cara. O Coelho Dentuço caiu sentado, com um fio de sangue escorrendo do nariz e segurando na mão o cigarro aceso. Recolhi os livros e cadernos caídos, virei as costas e fui embora. Deu vontade de correr rua acima, mas caminhei bem devagar, como um herói dos meus gibis.

Na mesa do almoço, o pai fingiu que não notou meu rosto afogueado nem a mão lanhada, mas não falou nada. Nem era preciso. Foi quando me senti um herói  de verdade.

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem agens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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