O Grenal do velho Borges

No velho jornalismo, dois fantasmas assombravam os redatores de plantão: o estouro e o buraco. Por mais precisos que fossem os cálculos da diagramação, …

No velho jornalismo, dois fantasmas assombravam os redatores de plantão: o estouro e o buraco. Por mais precisos que fossem os cálculos da diagramação, não se tinha como prevê-los.


O problema se originava na diferença de entrelinha das matrizes de linotipo. Algumas frações de milímetro, para mais ou para menos, podiam se transformar em alguns centímetros de chumbo sobrante, o estouro, que precisava ser descartado; ou em um vazio na página, o buraco, que precisava ser preenchido.


Era esse, em grande parte, o trabalho do redator de plantão. Na maioria das vezes, já não havia mais ninguém na redação, principalmente quem escrevera a matéria. Cortar ou acrescentar algumas linhas fora do óbvio podia ser temeridade.


Hoje, com a informatização, o problema não existe. Quem trabalhou na antiga Última Hora de Porto Alegre gaba-se da exatidão de seus cálculos. Omite que as matérias do jornal tinham apenas 15 linhas em média. O problema da entrelinha tornava-se irrelevante.


Não era o caso do velho Correio do Povo, de absoluta falta de planejamento e matérias quilométricas, medidas "a olho". Sempre que se ouvisse algum estampido, fosse de fogos de artifício ou de automóveis com carburador mal regulado na rua, alguém gritava a piada na redação: estouro na oficina!


A necessidade e a preguiça são ventres férteis para gerar habilidades especiais. Havia mestres em cortar parágrafos e transformar vírgulas em pontos finais, manejando um estilete no chumbo e tornando desnecessário o "recorrido" (recomposição) da matéria.


Dependendo se ainda permanecia com sentido, a sobra ganhava novo título e se transformava em outra matéria. Era juntada a outras sobras de edição anteriores, a "ficada", e engrossava as muitas léguas de chumbo que ali já estavam desde tempos ancestrais, à espera de um "buraco" de página para ressuscitar, como se fossem almas no limbo. O que explica a súbita aparição do sr. Borges de Medeiros, perambulando em uma reportagem esportiva.


Foi na terça-feira subseqüente a um dos muitos Grenais que contribuíram para o gaúcho abandonar o antigo e pouco saudável esporte das degolas mútuas, praticado com notável pertinácia e tingido de espírito épico, nas inúmeras tropelias civicamente apelidadas de "revolução".


De repente, em meio ao sofisticado relato da troca de coices e ofensas à mãe do juiz, surgem em tom de funeral as virtudes inexcedíveis do mais antigo e persistente governador do Rio Grande Sul.


Particularidade: o velho Borges ainda estava vivo. O trecho era parte descartada do seu necrológio antecipado e tinha ido parar na ficada.


Chutado de ficada em ficada, acabou parando no meio de um Grenal.

Autor

Jayme Copstein é jornalista, com atividade em jornal e rádio desde 1943,com agens pelos principais veículos de Porto Alegre. Trabalhou 22 anos no Grupo RBS como apresentador de programas e comentarista de opinião da Rádio Gaúcha, e atualmente é colunista do jornal O Sul e apresentador do programa 'Paredão', na Rádio Pampa. Detentor de vários prêmios, entre eles, Medalha de Prata (2º lugar) no Festival Internacional do Rádio de Nova York (1995), em 1997 publicou "Notas Curiosas da Espécie Humana" (AGE). Seu livro mais recente é "A Ópera dos vivos", editado em janeiro de 2008.

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