O estranho caso do trabalho escravo premiado
Por Márcia Martins

O jornalista Leonardo Sakamoto, em seu espaço no portal UOL, em 2 de abril, publicou na coluna intitulada "Rega-bofe no RS chama de erro crime de escravidão na produção de vinho", um comentário extremamente oportuno sobre um jantar oferecido aos notáveis presentes no South Summit. No evento, foram servidos espumantes e vinhos da Aurora, Garibaldi e Salton. As três empresas gaúchas, todas situadas na Serra do Rio Grande do Sul, semanas antes tiveram 207 trabalhadores resgatados em regime de escravidão, contratados para as vinícolas por uma terceirizada.
No jantar, promovido pela tradicional família Sirotsky, proprietária do poderoso conglomerado Grupo RBS, que tem entre os seus principais negócios, a atuação na mídia brasileira, foram fartamente despejadas em taças aos ilustres convidados goles de espumantes da Garibaldi, de vinho branco da Aurora e tinto da Salton. Todos manchados pelo sangue, suor, exploração e desrespeito. Com a de trabalho escravo. Todos produzidos por seres humanos tratados como lixo, sem condições dignas. Com o cheiro de trabalho escravo.
Nem o Sakamoto, a quem respeito muito, e menos ainda essa que vos escreve, inventaram tal fato. O brinde com vinho gaúcho, das empresas que utilizavam empregados em regime de escravidão de uma terceirizada, foi confirmado na coluna da Giane Guerra, em Zero Hora, no dia 31 de março, com uma explicação do Publisher do Conselho Editorial do Grupo RBS, Nelson Sirotsky. Ao classificar a escolha como simbólica, Sirotsky disse que "todos, na nossa trajetória, temos acertos e erros". E prossegue: "eventuais erros têm que ser corrigidos. Assim é com o vinho gaúcho, com a comunicação, com qualquer setor".
Talvez, por isso, na capa da edição de Zero Hora, em 24 de fevereiro, a manchete secundária do jornal também tenha errado ao noticiar "Livres de trabalho irregular" ao invés do termo correto que seria "Livres de trabalho escravo" ao referir-se aos empregados que serviam, mesmo que de forma terceirizada, em condições degradantes e nada humanas, às vinícolas chamadas pela RBS para o jantar do South Summit.
É claro que erros existem e precisam ser corrigidos. Mas, por mais que eu tente entender, não consegui, ainda, captar a intenção de prestigiar as vinícolas infratoras em questão. Principalmente por ser um erro que envolveu vidas, seres humanos, trabalhadores que, assim como qualquer empregado, merece ser tratado com respeito e dignidade. Seria uma nova estratégia de Marketing? Um Marketing reverso? Isso existe? Ou uma submissão total do poder econômico aos anunciantes? Não posso afirmar nada. Navego na base da especulação em busca de respostas.
Trata-se, na minha opinião, do estranho caso do trabalho escravo premiado. E pior do que enaltecer as vinícolas ao contratá-las e rechear seus cofres, é buscar descrever a escravidão a que eram submetidos os trabalhadores como um erro. É um crime. Precisa ser combatido e não condecorado. Mesmo que o hino do Rio Grande do Sul defenda, de forma totalmente inadequada e incorreta, que a falta de virtude conduz à escravidão. Que tais façanhas, equivocadas, desrespeitosas, inescrupulosas, inissíveis, não sirvam, jamais, de modelo à toda terra.