O espírito de um programa
Mais de dois anos após ter deixado o Brasil na Madrugada da Rádio Gaúcha, as pessoas ainda me abordam, falando sobre o programa. A …
Mais de dois anos após ter deixado o Brasil na Madrugada da Rádio Gaúcha, as pessoas ainda me abordam, falando sobre o programa. A pergunta mais persistente é se não vou escrever um livro a respeito. Não tenho a intenção de fazê-lo. Já há teses acadêmicas que cheguem, dissecando a estrutura do programa, apresentadas por estudantes de Comunicação como trabalho de conclusão de curso. Eu não teria nada a acrescentar. Mais, até: se alguém me pedisse para criar, com base nessas teses, um programa que desse "novos rumos à madrugada do Rádio", eu ficaria amedrontado. Não aceitaria a tarefa, por mais atraente que fosse o salário. Não pelo salário, mas por não saber o que fazer. Foi exatamente esse o segredo - se é que se possa considerar segredo - do sucesso do Brasil na Madrugada. Foi o que aleguei a Flávio Alcaraz Gomes, quando me convidou para assumir o encargo. Ele me respondeu que fizesse o que eu sabia fazer, que já estava bem. Foi o que eu fiz. Como se vê, toda a história cabe em metade de uma crônica. O resto quem poderia contar eram os ouvintes daquela época. Eu poderia acrescentar os casos que mais me marcaram. Fico apenas com uma carta, de uma menina de 12 anos que detestava seu nome, porque sintetiza o espírito do Brasil na Madrugada. A carta dizia: "Um beijão pra ti, Jaime. Tenho doze anos, sou loirinha, estudo piano, moro na rua José do Patrocínio. Estou escrevendo pra ti porque o meu caso é muito sério. Tenho um nome horrível. Minha mãe me batizou de Jurema por religião. Minha Vó concorda comigo. Quero trocar o meu nome ou então acrescentar outro, nem que seja assim: Jurema Alice, Jurema Elena. Não importa, desde que Jurema saia da minha vida. Outro beijão." Naquela época, 1992, o desembargador Sérgio Gischkow Pereira era o nosso consultor de Direito Civil. Nada podia ser feito porque não se tratava de nome que pudesse trazer constrangimentos à menina. Diante do quê, explicada a impossibilidade, respondi: "(?) pensando bem, Jurema não é um nome feio. Vou dizer de novo: Jurema. É nome de árvore. Tem duas espécies desta árvore, a jurema branca, muito parecida com a acácia, e a jurema preta, também conhecida como mimosa. Não te parece que uma menininha Jurema, loirinha como tu, é também algo de muito mimoso que Deus botou na terra? Conheço muitas pessoas que têm este nome de Jurema. São pessoas muito bonitas. Tem a Jurema Josefa, jornalista, muito talentosa e muito estimada em toda a parte. Outra Jurema é Jurema Alcides Cruz, com vários livros publicados. É professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Como você vê, não é o nome que faz a gente, mas a gente que faz o nome. Claro, às vezes a gente se desgosta com o som que o nome da gente tem. Conheci uma menina chamada Joyce, que não gostava de ser Joyce e teve a mesma idéia que tu tiveste - acrescentou um Elisabeth e para todas as amigas, ou a chamar-se Joyce Elisabeth. Acho que as pessoas têm direito de inventar nomes para si mesmas ou para as outras coisas. Sabes, eu era menino como tu e conversava com uma pequena aranha que havia debaixo de uma escada. Alguém me disse, não me lembro quem, que a gente não conversava com aranhas. Mas aquela aranha, inventando teias, me parecia muito a minha Vó fazendo tricô, e eu chamava a aranha de Vó. A aranha nunca ficou zangada com isso. Pelo contrário, acho que até ficou muito feliz, porque continuou inventando teias. E cada teia era mais bonita do que a outra. Inventa, minha querida Jurema, todos os nomes que quiseres inventar pra ti. E fala para os amigos para te chamarem pelo teu nome novo. Jurema Alice? Jurema Helena? Que gostosura. Não faz mal que no colégio, lá na matrícula, esteja o nome que não gostas. Todos nós, aqueles que te amamos tanto, sabemos teu nome verdadeiro. Mas como ainda não decidiste qual deles será o verdadeiro, vão três beijos: um para Jurema Alice, outro para Jurema Helena e um terceiro para a pessoa que decidires ser." O espírito do Brasil na Madrugada era esse: pessoas comuns conversando a respeito de suas vidas, uma delas, o apresentador, do lado "de cá" do microfone, cuidando para as pessoas "incomuns" as incomodassem.