O encontro das pedras
Saiu de um banco após falar com o gerente. Queria um financiamento, mas não tinha renda. Foi ao sindicato vender uns livros de sua …
Saiu de um banco após falar com o gerente. Queria um financiamento, mas não tinha renda. Foi ao sindicato vender uns livros de sua minúscula editora pra ver se entrava algum. Quando se deu conta, estava na avenida-arela do centro urbano com um tempo inútil e sem serventia. Se Fu Lana é uma mulher sem sorte, ali no meio do povo, sentia-se uma heroína. Afinal, estudara, trabalhava com letras, com história. Editava livros, pô. Nem isso a tirava do martírio de ser apenas uma pedrinha insossa na multidão. Mesmo que a multidão fosse uma centena de gatos-pingados naquela rua movimentada no sul do hemisfério sul, perto do fim do mundo. Sua figura não impressionava, ao contrário do que sonhara para si. O brilho das artistas de cinema não a acompanhava, tal qual imaginara em criança. Estava mais para uma atarracada gaúcha, com roupas surradas, cabelos em desalinho, defendendo-se de transeuntes ignorantes, certamente mais felizes do que ela. Resolveu largar-se frente a obras de arte para esquecer de si mesma. Seu esporte preferido. Deu sorte. Encontrou Túlio Pinto na Galeria Xico Stockinger, na Casa de Cultura Mario Quintana.
Gosta daquela parte da cidade, antiga e bem cuidada, pelo menos na fachada. Gosta de estar vagabundeando, quando deveria estar trabalhando. Sabe-se lá por quê. A tarde lembra gazetas quando matava aula para não fazer absolutamente nada. Uma rebeldia pela liberdade de opção. A Casa de Cultura permite absorver outros tempos só de se andar nela. Sente-se uma massagem na baixa auto-estima. Aquele rosa das paredes conforta como um abraço materno.
Na Galeria, o artista apresenta telas, pequenas esculturas-instalações e dois curtas em uma telinha. Engraçado ela ter se sentido tal uma pedrinha inútil naquele eio vago, horas antes. Um dos vídeos (nunca mais saberemos nos referir a uma obra em movimento, se ela é um vídeo, um dvd, ou mesmo um filme, como antigamente) tratava do Exílio da Inércia, quando o autor levava pedras para ear em viagens a pontos turísticos. Retirava as pedras de um lugar, anotava algo nelas e as levava para outro lugar, abandonando-as a sua própria sorte. Os artistas gostam de enigmas. Dificilmente você vai a uma exposição sem ser exposto a uma questão paradoxal. Movimento versus rigidez, o mole e o duro, o preto e o branco. As relações contrárias movem as cabeças dos artistas. Tais contrários estão na obra Contágios, quando imensos pregos (lembram aqueles que fixam o Cristo à cruz) são suspensos sobre pequenos potes de vidros contendo líquidos. A ponta do prego (cujo material varia nas pequenas obras-instalações) está em contato com estes líquidos. Se o prego é de ferro, encontra a água e sua ponta reage formando a ferrugem. Se o prego é de borracha, o líquido pode ser café ou leite e a ponta vai absorvendo a solução e modificando-se a si e à solução. A questão da diferença de materiais e as reações que provocam mudanças compõem a questão posta pelo artista. Em geral, as pessoas desdenham ou zombam de trabalhos como esse. Porém, há mais sobre a terra do que vãs piadinhas de pessoas fechadas para a percepção.
As pinturas são gestuais, onde dominam poucas cores: basicamente, vermelho, azul, preto e branco. O conjunto da galeria, suas paredes claras e a iluminação sobre as obras compõem um quadro tão agradável que não precisamos entender a pintura. Fruir é a palavra de ordem. Frente a um quadro desses, é só deixar os olhos perseguirem os grafismos que sobrepõem manchas simulando profundidades e atmosferas. E - certamente a uma referência ao sofrimento de um homem na cruz -, há uma instalação enorme com lençóis manchados de tinta vermelha e vergalhões carcomidos de madeira apoiados sobre ele, como um homem em uma rede. A simbologia abunda. E a gente desbunda com a cena que é uma obra. Bom de sentir aquela porrada no peito. Para um ser medíocre, até que Fu Lana sente-se viva nessas horas. Gosta de ficar sozinha nas salas de arte quando o diálogo é dela com os trabalhos e o artista faz-se falar sem estar presente. Quase como um ato de fé e comunicação com o sobrenatural. Uau? Pegou um bus e foi para casa, chacoalhando.