O dono da vida

Naquele tempo, logo depois das diligências, quando estrada era tudo carreteira e ônibus não tinha privada, viajei de Bagé a Santa Maria. ava uma …

Naquele tempo, logo depois das diligências, quando estrada era tudo carreteira e ônibus não tinha privada, viajei de Bagé a Santa Maria. ava uma hora, se tanto, que tínhamos deixado para trás o restaurante de beira de estrada, levando no bucho uma feijoada que a uns mergulhava em bem-aventurança, a outros, em aflição.


Como ainda havia umas quatro horas de sacolejo pela frente, tentei matar o tempo, ando os olhos pelos demais ageiros. Ninguém de chamar a atenção. Éramos 60 pessoas compartilhando absoluta falta de intimidade. Até os que se acompanhavam, só cochichavam, mesmo as banalidades.


De repente, a modorra se estilhaçou, com a voz estrangulada de angústia saindo de entranhas:


- Pára el coche! Pára el coche!


O motorista guinchou no freio. Um castelhano clinudo veio correndo lá do fundo, segurando a barriga como se recém tivesse sido estripado, e mergulhou na paisagem. Só que era descampado, não havia nenhum atrás-da-árvore.


O ônibus se acendeu em murmúrios. A situação do castelhano era precária. O que fazer, o que não fazer para lhe poupar constrangimento na volta. Um sorriso de compreensão porque a vida tem seus naturais? Quem sabe fingíamos não entender castelhano e não ter percebido o que acontecera?


Pois estávamos todos nestas conjecturas e indecisões, quando o castelhano voltou.  Subiu no ônibus muito senhor de si, estufou o peito com olhar de triunfo, bateu com ruído as duas mãos na barriga e proclamou ao mundo:


- Ahora, si, soy otro hombre! Siga el coche!


Todos baixamos os olhos, encabulados.

Autor

Jayme Copstein é jornalista, com atividade em jornal e rádio desde 1943,com agens pelos principais veículos de Porto Alegre. Trabalhou 22 anos no Grupo RBS como apresentador de programas e comentarista de opinião da Rádio Gaúcha, e atualmente é colunista do jornal O Sul e apresentador do programa 'Paredão', na Rádio Pampa. Detentor de vários prêmios, entre eles, Medalha de Prata (2º lugar) no Festival Internacional do Rádio de Nova York (1995), em 1997 publicou "Notas Curiosas da Espécie Humana" (AGE). Seu livro mais recente é "A Ópera dos vivos", editado em janeiro de 2008.

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