O Comodoro e o Capitão

Por José Antonio Vieira da Cunha

Breno Caldas foi o tema dominante de uma boa conversa virtual que tivemos outro dia com o José Antonio Pinheiro Machado, que registrou em livro a série de conversas que teve com o proprietário da outrora poderosa Companhia Jornalística Caldas Jr. A conversa foi no grupo Nova Coonline e está publicada no YouTube para quem quiser apreciar, e uma simples busca no Google localiza o livro Meio século de Correio do Povo - Glória e agonia de um grande jornal, um título mais do que revelador. Sua importância ainda é robustecida por um dado concreto: editada pela L&PM, foi a obra mais vendida na Feira do Livro de Porto Alegre em 1987. 

Agora em outubro o Correio do Povo completou 128 anos de atividades interrompidas por um breve período de dois anos, entre a falência da empresa e sua aquisição pelo empresário Renato Ribeiro, que depois o revendeu ao Grupo Record. O jornal foi inovador ao se apresentar como um veículo independente num período em que todas as publicações pertenciam a algum grupamento político. Inovou também ao formar uma redação, corpo inexistente nos periódicos que circulavam no século 19. Graças a esta postura acabou sendo o principal meio de comunicação do Rio Grande do Sul durante décadas, até começar, no final dos anos 70, a enfrentar adversidades que levaram à inevitável ruína.

Breno relataria estas dificuldades e seus relacionamentos com governantes, inclusive da ditadura, como o general Médici, no rico depoimento ao Pinheirinho. "Fui seu amigo durante seus últimos anos, quando já estava longe de ser um dos 10 homens mais ricos do Brasil, como foi considerado pela revista Veja nos anos 1970", diria mais tarde o escritor, explicando também que se aproximou do empresário "movido pela perplexidade que, desde 1984, atingia a maioria dos gaúchos: como e por que o Correio, a publicação mais importante do Rio Grande - e uma das mais importantes do Brasil -, quebrou?".

Pinheirinho queria ouvir de viva voz a versão do personagem principal, e ela está lá no livro, fruto de dezenas de rodadas de conversas entre os dois, muitas vezes embalada pelo bom uísque que Breno apreciava. Está tudo lá, à disposição de quem queira conhecer histórias do Rio Grande, do Brasil e da imprensa do século ado.

Lembrar Breno Caldas remete a vários personagens do jornalismo gaúcho no século 20, e um deles ainda está a merecer um registro em um capítulo desta história. É Erasmo Nascentes, que conheci quando iniciei a atuar na imprensa como um foca na recém-criada Folha da Manhã, em novembro de 1969. Era conhecido como Capitão, uma figura aparentemente austera, que se encastelava em sua mesa, localizada no centro da redação da Folhinha, de onde via tudo e tudo lia. Media pouco mais de metro e meio, mas parecia um pequeno gigante na condução daquela redação forjada basicamente por jovens jornalistas e meia dúzia de talentos experientes, como João Souza, Florianinho Soares e Aníbal Bendati, e apenas duas solitárias mulheres, Núbia Silveira e Laila Pinheiro.

Na editoria de geral, tendo como chefe o inesquecível Florianão Corrêa, a equipe de repórteres era ainda mais jovem, mas também talentosa: Carlos Urbim, Carlos Karnas, Clóvis Ott e Waldomiro de Oliveira estavam entre eles, disputando espaço na única kombi disponível para atender a reportagem. Era até engraçado, saia lotada com quatro ou cinco repórteres, mais dois fotógrafos, que ia distribuindo pelos locais determinados, dava um tempo e fazia o retorno para o resgate da turma. O Ivan, irmão mais moço do José Antonio, estava entre nós, e lembro de um dia em que ficamos nós dois aguardando a bendita kombi por mais de uma hora. Não perdemos tempo, devorando bergamotas ao sol.

O Capitão parecia turrão, mas no fundo era uma mãe. A gente não entendia bem isso, e uma vez chegamos a nos movimentar para derrubá-lo, olhe só a insolência. Soube resolver o ime, porque era mesmo muito compreensivo. "Ele errou em muitas coisas, mas sempre, mesmo de mau humor, defendeu a equipe", me disse outro dia Núbia Silveira. Assino embaixo, e revelo uma das tantas histórias que o cercam. Certa vez, um chefete de redação da irmã Folha da Tarde exigiu dele minha demissão porque eu teria sido desrespeitoso. O Capitão ouviu as duas partes e simplesmente ignorou o ultimato do colega.

Núbia estava lá desde o início do jornal, tem ótima memória e conta: "Ele convidou Ivette Brandalise para ser colunista, mesmo sem muita convivência com ela. Levou o Luís Fernando Veríssimo, que não era um colunista conhecido. Entregou a campanha de lançamento da Folhinha nas mãos do Jefferson Barros, que trabalhava na agência MPM e na equipe que formaria a FM. Pode ter se assustado um pouco, mas não vetou a foto da Jane Fonda numa praia, peça criada pelo Jefferson. Ele só não gostava de pessoa preguiçosa. Aí ele se enfurecia". Relembrando: a atriz americana aumentou sua fama ao interpretar Barbarella, personagem de histórias em quadrinhos, uma loira linda, desinibida, com suas pernas longas, corpo fino, olhos inquietos, exalando sensualidade. Sua foto de biquíni em um cartaz a ser colocado nas bancas de jornal foi mesmo um lance arrojado, mas atingiu o objetivo ao chamar a atenção para o jornal.

No entanto, a Folhinha não decolava, apesar de certas originalidades e abordagens diferenciadas em relação aos outros dois jornais da Caldas Jr. Até que, pouco mais de dois anos após sua criação, Breno foi convencido a mudar - e a mudança envolvia o afastamento do diretor. Que saiu magoado, pois apenas soube por acaso das tratativas encabeçadas por Francisco Antonio, filho de Breno. A Núbia reforçou, em uma mensagem que me enviou, lembrando que ele se sentiu apunhalado pelas costas, mas reagiu com dignidade. Quando soube das reuniões que o Tonho estava fazendo fora da empresa com José Antonio Severo, entregou o cargo e se foi antes da assunção do novo comandante.

Autor
José Antonio Vieira da Cunha atuou e dirigiu os principais veículos de Comunicação do Estado, da extinta Folha da Manhã à Coletiva Comunicação e à agência Moove. Entre eles estão a RBS TV, o Coojornal e sua Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre, da qual foi um dos fundadores e seu primeiro presidente, o Jornal do Povo, de Cachoeira do Sul, a Revista Amanhã e o Correio do Povo, onde foi editor e secretário de Redação. Ainda tem duas agens importantes na área pública: foi secretário de Comunicação do governo do Estado (1987 a 1989) e presidente da TVE (1995 a 1999). Casado há 50 anos com Eliete Vieira da Cunha, é pai de Rodrigo e Bruno e tem cinco netos. E-mail para contato: [email protected]

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