O Brasil mau caráter
No meu país há uma poderosa rede de televisão que fixa um prêmio em dinheiro, uma fortuna para quem não tem nada, para que …
No meu país há uma poderosa rede de televisão que fixa um prêmio em dinheiro, uma fortuna para quem não tem nada, para que os eleitos pela produção fiquem reclusos sob as câmaras e mostrem para toda a população brasileira o que há de pior em nossa índole tropical. Os critérios da competição, perversamente elaborados por produtores desalmados, estimulam os traços mais sombrios da natureza dos participantes. Enjaulados e estressados, surge a fissura, a volúpia com que fazem pactos ardilosos em que prevalece o embuste, a mentira, a sedução ordinária, a promiscuidade ensandecida e a traição, imprevisível para os pobrezinhos de mentes boçais e infantilizadas. Os protagonistas foram escolhidos a dedo para realçarem traços sado-masoquistas, hedonismo suburbano, intrigas rasteiras, lágrimas abundantes e assim obterem o máximo de sofrimento sertanejo e sacanagem por metro quadrado, nesta que é a casa da maior dramaturgia da televisão brasileira. Tudo feito para deliciar o imaginário distorcido de grande parte do povo brasileiro. O âncora do programa, um jornalista articulado, charmoso e convincente, dá o tom de normalidade, como se tudo fosse uma brincadeira inocente, e Maquiavel sorri no caixão cada vez que ele abre a boca.
Houve uma cena em que os iludidos ficaram com o braço levantado e preso em correntes ligadas a um balde cheio d"água sob suas cabeças por um longo tempo. A câmera deu close no olhar de angústia e sofrimento das pessoas. O estresse e o cansaço abaixam o braço, que derruba a água na cabeça do infeliz. Ele, ela, derrotados e humilhados, explodem
Cada vez mais percebo a vida com os olhos de um dos escritores que mais li em minha vida: Gabriel Garcia Marques, o mestre do absurdo cotidiano, o pai do realismo fantástico. No meu país, 214 deputados federais elegeram um corregedor que não denuncia ninguém "pelo vicio inevitável da amizade". Ele disse isso na tribuna, na frente das câmeras. E o que mais tem o Brasil? Ah, o Brasil tem tanta coisa, além do senador da serra elétrica. Não vou dar um fecho nesta crônica. A mãe gentil, dos filhos deste solo, é muito grande, muito complexa, e muito surpreendente para receber uma conclusão rápida e rasteira. Quando mais eu vivo aqui, mais eu amo este país torto, iluminado e talentoso, para o bem e para o mal.