Notas da Jornada de o Fundo (3)

oOo Adriana Pantoja, de Guadalajara, envolvida com projetos de incentivo à leitura, me desiludiu. As melhores cervejas mexicanas não são exportadas. Lembram de uma …

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oOo Adriana Pantoja, de Guadalajara, envolvida com projetos de incentivo à leitura, me desiludiu. As melhores cervejas mexicanas não são exportadas.
Lembram de uma cena de "Tragam-me a cabeça de Alfredo García", de Sam Peckinpah? Dois gringos no México - convidado para tomar uma cerveja, um deles torce o nariz. O outro diz: "Os alemães inventaram a cerveja, mas os mexicanos aperfeiçoaram-na". Claro, quem inventou a cerveja foram os egípcios, mas o recado está dado.
oOo Um porre, o Ricardo Silvestrin. Com toda a simplicidade ele mostrou o tamanho da minha ignorância em matéria de poesia, letra, música e a relação entre elas. Eu pensava que o nome da banda dele, PoETs, era uma brincadeira. Que nada! É alienígena mesmo. É melhor tomar cuidado.
oOo O acaso me botou numa mesa do Boka, bar da moda de o Fundo, com Cristóvão Tezza. Eu o conhecia apenas pela imprensa e por um livro, "Juliano Pavolini", de que gostei, mas de que não lembro. Agora, o livro mais badalado, cheio de prêmios e reverências, "O Filho Eterno", o livro que o levara a o Fundo, me desiludiu em duas páginas. Como eu tenho um problema com a mentira - mais físico que moral: se minto, se nota na hora, porque suo, fico pálido, gaguejo, sorrio amarelo, coisa que me levou a um fracasso social retumbante -, prefiro ficar quieto. Daí a conversa ficou pipocando de uma banalidade pra outra até que Tezza falou em George Simenon. Não é que somos fãs do homem? Mais, consideramos "Sangue na Neve", título idiota dado aqui à novela chamada "Neve Suja", a melhor coisa de Simenon. Pra mim ao menos estava salva a noite.
oOo O Altair Martins falou bem pra chuchu sobre memória, mas eu, sem parentesco com Funes, me lembro melhor do que ele chamou de "memórias roubadas", quer dizer, escrever sobre a experiência dos outros, partindo de coisas que nos contaram, coisas que vimos, coisas que lemos. Ele exemplificou com um conto sobre contrabando na fronteira, onde ele ou a infância através do Sérgio Faraco e do Tabajara Ruas. Claro que se não há algo muito pessoal e muito forte no fundo do texto, as experiências dos outros não nos salvarão. Isso me levou a pensar em contos e romances onde alguém se mata. Poucas vezes fico convencido de que o sujeito se mataria mesmo.
oOo Conversando com o Bráulio Tavares surgiu um desses assuntos inevitáveis entre escritores: a verossimilhança. A literatura tem de ser verossímil, tem de fazer sentido e manter uma certa discrição, digamos. A realidade não - ela não tem compromisso com nada, nem com fazer sentido: é confusa, absurda, caótica, delirante, escandalosa. A realidade é fantástica, não realista. O Bráulio lembrou que depois do ataque às Torres Gêmeas foram encontrados na rua os documentos de um dos terroristas. Como encaixar isso num livro ou filme? Não sobrou uma pestana do sujeito, mas lá estavam os documentos intactos. Talvez numa comédia do tipo Três Patetas fosse aceitável.

oOo A chef Lisete Lütz Biazi recebeu a receita de peixe ao molho de vinagre, gostou e me disse que na próxima Jornada será servido Peixe à Ernani Ssó. Honra inesperada e imerecida - copiei a receita do livro "Frugal Gourmet", do Jeff Smith. De qualquer forma, posso dizer como Zagalo: vocês vão ter que me engolir.
oOo Tabajara Ruas disse que em "Perseguição e Cerco a Juvêncio Gutierrez" há uma cena totalmente falsa: o adolescente lendo na frente da casa. Naquele tempo, na fronteira, quem lia, lia escondido ou tinha sua masculinidade posta em dúvida. o Fundo não devia ser muito diferente. Mas hoje não só se lê em qualquer lugar como o Fundo ostenta, com orgulho, o título de Capital da Leitura. Foi um o longo.
 

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. ou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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