Notas da Jornada de o Fundo (2)

oOo Tive longas e agradáveis conversas com a poeta e professora Beatriz Viégas Faria. Ela me disse que tremeu nas bases, quando a convidaram …

oOo Tive longas e agradáveis conversas com a poeta e professora Beatriz Viégas Faria. Ela me disse que tremeu nas bases, quando a convidaram para traduzir um livro infantil. Acha a linguagem da literatura infantil das mais difíceis. Isso, dito por uma reconhecida tradutora de Shakespeare, me comoveu, num meio em que tanta gente acha que, se é pra crianças, qualquer baboseira serve.
oOo Café da manhã com Tabajara Ruas, Lourenço Cazarré e Altair Martins. Falamos de cinema e literatura? Certamente, mas falamos muito mais, ou eu pelo menos, de uma coisa que nos pegou de surpresa: o Fundo talvez seja, no Brasil, o lugar em que há mais loiras naturais por metro quadrado. É pouco? São quase todas lindas. Ainda é pouco? Também está assim de morenas igualmente lindas.
oOo Uns parentes do Tau Golin tinham um matadouro. Aí, quando abatiam um touro especialmente selvagem, um tio enchia um caneco de sangue e dava pra ele - pro menino de seis anos adquirir a força do animal. Não aconselho isso a ninguém, mas parece que deu certo com o Tau. Agora, deixa eu me exibir também: já bebi coisas piores, muito piores, como vinho de garrafão.
oOo Em nossa mesa sobre problemas de tradução, Jorge Furtado cantou a paródia do Hino Nacional que fez com Liziane Kugland na versão de "Alice no País das Maravilhas". Hilariante. Parece que enfim "Alice" foi traduzida na Brasil. Eles partiram para o que o próprio Lewis Carroll achava que devia ser feito, traduzir o espírito do livro, não o texto ao pé da letra. O hino é um bom exemplo. Que criança brasileira acharia graça numa brincadeira com o hino inglês?
oOo Jorge Bucksdricker falou que o pessoal ligado às artes visuais se apropriou mais rapidamente das ferramentas informáticas que os escritores. Nas artes visuais se notam alterações de forma e conteúdo, digamos grosseiramente, em função dessas ferramentas. Mas nos textos?
Eu uso o computador como uma máquina de escrever mais sofisticada, digamos. Dos inúmeros recursos do Word, tratei de conhecer os que necessito pra me facilitar a vida e deixar meu texto mais bem apresentável. Só, embora não me custe pensar em romances digitais com textos que se ramificam, se multiplicam, se voltam sobre si mesmos, ou fiquem embutidos como bonecas russas, ou outras brincadeiras no gênero. Me falta é paciência pra encarar.
Mas conheço escritores que não sabem nem pra que serve aquela tecla chamada Tab, por exemplo, nem tiveram a curiosidade de tocar nela pra ver o que acontecia. Simplesmente aboliram o espaço que indica o começo de um novo parágrafo, espaço que se levou séculos para se conquistar. Usam uma linha em branco entre blocos de texto, coisa que me parece bastante feia visualmente.
Esperemos pelas novas gerações. Nós, por preguiça, nos agarramos ao antigo conceito: não se ensina truque novo a cachorro velho.
oOo Confesso um crime contra a humanidade: acho a maioria dos poetas irrelevante, chata ou boçal, ou tudo isso junto. O fato de alguns terem ganhado o Nobel não me comove. Deve ser um problema glandular meu, provavelmente. Leio muito poucos poetas. Entre eles, Paulo Becker. Mais: sempre penso no Paulo Becker como meu amigo, mesmo que eu o tenha visto apenas uma meia dúzia de vezes por uns minutos. Fui a o Fundo com a esperança de falar longamente com ele. Não deu. A Jornada é uma maratona. Mas voltei mais amigo do Paulo.
oOo Há escritores que desanimam a gente, por escrito e pessoalmente. O Tabajara Ruas tem o efeito contrário, pelo menos pra mim. Se o leio, ou falo com ele, fico entusiasmado, a fim de fazer mil coisas. Quase como na saída do cinema, aí pelos dez, doze anos, depois de ver um bom faroeste.
 

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. ou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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