Nos tempos do Bel Canto

Por José Antônio Moraes de Oliveira

 
Uma das mais recorrentes imagens de infância é o sorriso de enlevo e o olhar perdido de meu pai quando ouvia "El Mundo de la Opera" na Rádio Belgrano de Buenos Aires.

Era um programa obrigatório nas noites de domingo- ele ligava o rádio Telefunken de 12 válvulas, que crepitava com   estática e zumbidos. Mas então o "olho mágico" piscava, as válvulas se aqueciam e quando batiam as 8 da noite, ouvia-se os acordes de "La Forza del Destino" e a voz empostada do locutor anunciando a transmissão direta do Teatro Colón.

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Era um tempo de encantamento - mesmo sem entender uma palavra em italiano, ficávamos envolvidos pela magia de Verdi e Puccini entoada pelas vozes poderosas de tenores e barítonos.Um ritual quase religioso, repetido aos domingos, à mesma hora,com o pai mexendo nos botões do Telefunken, tentando sintonizar as emissoras de Buenos Aires.

E ficava todo feliz, quando o speaker anunciava uma de suas favoritas: La Traviata, La Bohéme, Madame Butterfly ou o Tannhä de Richard Wagner. Enquanto isso, eu e minha irmã, sentados no tapete da sala, nos entretíamostentandosaber qual cantor era capaz de fazer tilintar os copos na cristaleira do outro lado da sala.

Quando se ouvia uma voz mais potente ou um agudo mais alto, nos virávamos para conferir - quanto mais tilintavam os cristais, mais palmas batíamos. Claro que nosso pai tinha suas preferências - o primeiro dos tenores, o Beniamino Gigli e Tito Gobbi, o melhor entre os barítonos. No entanto, sua verdadeira empolgação era ouvir Amelita Galli-Curci ou Renata Tebaldi.

E quando uma daquelas grandes divas começava a emitir seus trinados, a gente chegava mais perto para ouvir melhor. Então,as árias invadiam a casa e mesmo sem entender uma palavra em italiano, a emoção era como se estivéssemos no camarote do Teatro Colón.

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O Bel canto também era uma das paixões dos remadores reunidos aos sábados no Bar Lilliput. Os alemães do "Ruder Verein" amavam a música de Richard Wagner, mas os italianos do "Canottieri Duca degli Abruzzi" proclamavam que o maior músico do mundo era Giuseppe Verdi. 

Eles rodavam os discos de ópera em uma moderna Victrola RCA e depois discutiam sobre quem fazia a melhor música, alemães ou italianos. Mas no fim, tudo se acertava entre brindes e risadas.E os velhos remadores voltavam a ser jovens, ouvindo música, bebendo cerveja e contando estórias de tempos gentis que não mais existiam.

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Muitos anos mais tarde, de agem por Buenos Aires, li no La Nacion o anúncio da noite de gala de reinauguração do Teatro Colón. O programa era uma homenagem a Giuseppe Verdi e sua última ópera, Falstaff, que seria regida pelo famoso Arturo Toscanini,com a participação da prima donna Renata Tebaldi.

Não consegui evitar a emoção ao imaginar meu pai e seus amigos remadores entrando no grande teatro profusamente iluminado para ouvir a música de Verdi na voz da grande diva.

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem agens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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