No tempo do chumbo e do clichê
A Folha de S. Paulo encerrou os trabalhos de duas editorias muito especiais, nos últimos dias. Primeiro, transformou a Folhateen num pedaço da Ilustrada. …
A Folha de S. Paulo encerrou os trabalhos de duas editorias muito especiais, nos últimos dias. Primeiro, transformou a Folhateen num pedaço da Ilustrada. Agora, a seção Saber também foi pro espaço, provocando uma queixa em forma de crônica ou algo que o valha do mix de empresário e diletante do jornalismo Ricardo Semler - que é, também, nas horas vagas, escritor de auto-ajuda empresarial.
Bueno. Eu aprendi a ler no velho Correio do Povo, para gáudio da dona Luci, que ainda hoje conta a todo mundo que só não entrei mais cedo para o primeiro ano primário do Grupo Escolar Gonçalves Dias porque aniversario em outubro e ela precisou esperar eu completar sete anos para me vestir com aquele guarda-pó duro de goma, branco impecável, que era o uniforme dos pobres na época. E que bom que era calçar o Vulcabrás pintado e lustrado pelo seo Waldemar e empunhar a pasta de couro velha que tinha lugar para cadernos (agora sei porque sempre criavam orelhas naquela pasta imensa), lápis, borracha e, claro, a garrafa de coca-cola com café com leite quente, tampada com rolha de papel de pão, acompanhada por um baita sanduíche feito com as fatias mais largas de pão de meio quilo, recheadas com a mistura disponível no dia - muitas vezes, banana amassada!
Divaguei. Mas queria contar mesmo sobre o caderno do Correio do Povo em que eu lia, depois das aulas da dona Luci, claro, histórias cheias de aventuras e boas ações, e me deliciava com as aventuras de Tim Tim e seu cachorrinho de rabo empinado. Mas eu não lia só a parte para crianças do jornalão que a gente espalhava pelo chão da sala. O Correião, que meu pai ia buscar, religiosamente, a cada manhã de domingo (todo faceiro a bordo de seu pijama completo e chinelos para desespero da minha discreta mãe), na tendinha do outro lado do trilho dos bondes, na Volta do Guerino, me trazia coisas maravilhosas como as viagens de Ruth Caldas e as palavras cruzadas que eu teimava em tentar fazer, além do bric-a-brac da vida, que era também da minha predileção.
Ah, as viagens da Ruth Caldas, detalhadas, página inteira, as colunas imensas em letra miúda, coisa bem boa. Nem sei se eu gostava mais do Correio Infantil ou daquelas outras histórias para adultos. Talvez eu lesse o que não me cabia por birra, porque uma vez arrisquei mandar uma cartinha a redação que cuidava da gurizada, mas não deu em nada nem lembro a troco de que escrevi. Só sei que me esmerei: fiz rascunho e folha de caderno e ei a limpo em papel de carta acetinado. Minha mãe comprou um envelope que cuidei pra não amarfanhar, nele guardei a cartinha e lá fui eu, sujar os dedos de cola na agência do Correios da vila do IAPI, que funcionava num apartamento térreo pertinho ali de casa, e ficava ao fim de uma escadaria de grés, de frente para a Assis Brasil. Isso não esqueço, bem como a mulher gorducha de cabelos pretos, mãos brancas e unhas sempre pintadas de vermelho que ali morava e nos atendia.
Bem mais tarde, quando eu já era filha da "Casa de Caldas" (sim, a gente debochava do Caldas Júnior e de toda a família dele, mas tinha orgulho de estar lá, com certeza), eu ganhei de alguém as matrizes em chumbo de algumas seções. Entre estes carimbos gigantes que a gurizada não conhece e que se chamavam clichê, estava (está, porque ainda o tenho aqui em casa), um texto intitulado "E quase que Papai Noel se atrasa?", assinado por alguém chamado Skilef e ilustrado, acho eu, pelo Jaka. A ilustração mostra um Papai Noel trepado numa árvore e, no chão, com um pedaço dos fundilhos do velho entre os dentes arreganhados, um cachorro furioso. Atrás da chapa há carimbos que dizem "metais para fotogravura - microzinco Isam". Era para uma seção infantil, já nem sei se para a Folha da Tarde ou para o Correio.
Aliás, até interrompi o que estava escrevendo para pegar o clichê, que está aqui, comigo, diante do monitor. Acabo mesmo de ar um lápis de cor numa folha de papel que acomodei sobre o clichê, na esperança de ler o texto. Não deu certo. E esta é uma atitude de evidente preguiça, reconheço, porque cansei de ler o jornal na rama, tudo - texto, ilustrações, fotos - espelhado, com os tipos ainda quentes formando frases, tentando ganhar tempo para fazer as correções antes mesmo da prova que chegava molhada nas mãos da gente, entregue pela turma da oficina.
Hoje, tudo é diferente, e estas coisas não se acha mais, a não ser em algum jornal humildezinho dos interiô, uma gráfica de fundo de quintal, quem sabe. E está tudo tão fácil que criar e matar um caderno ou uma seção não custa nem o esforço de mandar derreter as frases materializadas no chumbo. Talvez por isso, seções para crianças não interessem mais. E tampouco coisas da educação. Ou vai ver a gurizada nem pega mais jornal na mão para ler temas ditos "infantis": tem a internet e ponto. E, cá entre nós, com a tal da educação oficial do jeito que anda, pode ser melhor diluir as notícias do setor em outras editorias: acabo de mandar , para a Folha, um pedido de correção de texto que fala em "descrição" quando queria dizer "discrição". Tempos outros, esses que vivemos. Sai, nostalgia.