Nem só de desenho vive o designer
Ela estava só em um compartimento de divisórias. No canto, uma geladeira dava o tom monótono à sala. As luzes brancas contrastavam com o …
Ela estava só em um compartimento de divisórias. No canto, uma geladeira dava o tom monótono à sala. As luzes brancas contrastavam com o piso gasto da forração. Fu Lana viajou dois mil quilômetros para estar naquele lugar, em um imenso prédio de uma área industrial.
Entre papéis em rolo, em resmas, rotativas e outras impressoras com oito e quatro torres, dobradeiras, coladeiras, guilhotinas, funcionários ensurdecidos pelos tampões obedeciam as regras e deslocavam-se pelos caminhos marcados no chão com listas azuis que dividiam o espaço para o movimento seguro de carrinhos e pedestres.
Foram duas horas de espera (porque, quando chove, o aeroporto internacional fecha), duas horas de vôo, crianças chorando, pessoas disputando espaços exíguos e mais 40 minutos de táxi, tudo para ela dar um ok na boca da máquina. Tudo isso para um parto de tinta e papel. Para que o trabalho ficasse direito, o cliente, feliz, e o leitor, absolutamente satisfeito. Viva o design gráfico.
Cada pessoa tem seus cacoetes e Fu Lana sofre de síndrome do pânico. Não pode ver muita gente junta e precisa conhecer onde pisa. Quando pediu um táxi, precisava do nome do motorista e da empresa. Só faltou pedir o grupo sangüíneo e a ficha policial. Tratava-se de um garoto semi-acordado, que ainda confessava estar insone há 24h. Tudo para aprovar o seu melhor trabalho.
Naquela sala, já estava sozinha por quatro horas entre idas e vindas à linha de impressão, onde avaliava as lâminas-teste, solicitando um pouco mais de magenta aqui, amarelo ali, quem sabe tirar o ciano e checar novamente os registros? Muitas vezes, ouvia dicas dos impressores que iam se revezando com o ar das horas. Alguns recortavam as lâminas para comparar as pontas do caderno, outros dobravam a lâmina em páginas e colocavam-na contra a luz. Os mais jovens tendiam a pedir mais carga de tinta, e os mais experientes elogiavam a sensibilidade do resultado obtido com o controle do nível da cor. Ela assinava solenemente os carimbos e seguia, feliz, para a reclusão.
Grandes gráficas possuem espaços para o lazer dos produtores e dos designers, para que fiquem tranqüilos entre os intervalos na impressão das lâminas. Naquele caso, as instalações mais adequadas ficavam por conta da diária em um hotel hiper-confortável, com traslado disponível. No entanto, Fu Lana preferia ficar reclusa, segura, pouco confortável, mas profundamente contente.
Afinal, estava na companhia de um livro de Mario Vargas Llosa, para o qual voltava correndo, retirava os incômodos tampões das orelhas e instalava-se no sofá vermelho para uma nova sessão de viagem romântica e novelesca. Em sua vida cotidiana, tinha poucas oportunidades de abandonar-se com a certeza de uma concentração absoluta. A algumas centenas de quadras dali, a megametrópole cintilava, ameaçadora.
Travessuras da menina má trazia uma personagem que lhe era familiar. Já a conhecia de outros livros, de outros autores. As meninas más são personagens recorrentes. Lembrou de Clô, dias e noites de Sérgio Jockmann. Mesmo perfil, mesmos vícios, mesma forma de sobrevivência: as meninas más prestam serviços de natureza sensual a homens endinheirados. Em meio à sujeira em que estão metidas, acabam por arrebatar o coração do herói narrador e, de um jeito ou de outro, por satisfação, carinho, carência ou sexo selvagem, descobrem que o amor é a única saída, ainda que tardiamente assumido. Mario e sua Lily. Sérgio e sua Clô.
Fu Lana bem sabe que as mulheres são as primeiras a fantasiar sobre a prostituição elegante, de luxo. Todas se acham capazes. Mas basta meio raciocínio (e um espelho) para que elas parem de pensar em besteiras.
Na vida real, bateram à porta da sala de divisórias. Era mais um caderno que precisava de seu autógrafo. Novos testes e a noite prometia. O que um designer é capaz de fazer para ter em mãos um trabalho com aquele toque especial? Uma equipe disposta a tudo. Da produção à execução, da preparação das provas à checagem na boca da máquina, a dedicação a um trabalho, em seus mínimos detalhes, compensa sempre. Dizia isso, abria uma bala de canela e voltava corrrendo a Paris, junto a Mario e seus irrequietos personagens.
?.
Babel é aqui
Previsões são para apostadores. Para chutadores, valem os palpites. Para Fu Lana, Babel não leva o Oscar. Será? Outro filme com tema semelhante, outros casos e personagens, tinha esse aspecto de caldeirão contemporâneo de diferenças: Crash, e ele foi a zebra daquele ano. Será que a Academia (adorava essa expressão!) vai premiar na mesma linha dois filmes seguidos? Infiltrados continua sendo o chute da nossa expert. Mas Babel mesmo, Fu Lana vê aqui no Brasil. Cariocas, paulistas, mineiros e gaúchos trocam de Estado como quem troca de pele e configuram o país em um grande e fantástico formigueiro, com trilhas populosas de idas e vindas. Podemos até concluir que a felicidade está sempre um pouco mais longe de onde nos encontramos naquele momento?