Não venha querer me consolar
Não venha querer me consolar, que agora não dá mais pé, nem nunca mais vai dar, já dizia a música “Vou deitar e rolar”, …
Não venha querer me consolar, que agora não dá mais pé, nem nunca mais vai dar, já dizia a música "Vou deitar e rolar", de Baden Powell e Paulo César Pinheiro, cuja melodia insisto em desafinar nos últimos dias. E, antes que um leitor mais fiel pense que estou pedindo elogios, aviso que é inútil escrever e dizer que canto bem. Total incompatibilidade de gênios. Nunca tive intimidade com harmonia, ritmo e tons. Até o Gandhi, meu cocker caramelo, foge acuado quando ensaio uma canção. Mas todos me alertavam, há várias colunas, que os filhos, um dia, crescem e tornam-se filhos do mundo.
Como toda mãe possessiva (e daí? Não quero seu olhar de espanto!), não acreditava muito nesta geração espontânea de filhos para o mundo. E seguia naquela máxima de que a teoria da libertação dos filhos ocorria só com os filhos dos outros. Para cimentar bem a tese, cercava a minha rebenta de todos os mimos sustentados pelas finanças e dos afetos possíveis (será que fui sufocante?). Ao final de cada ano, carinhava seus cabelos sedosos dormitando sobre meu colo e, lá no fundo, esboçava um sorriso provocador, típico daquela pessoa que exibe, com satisfação, o seu troféu guardado no armário.
Desmanche esta ruga desaprovadora. Sei que você me entende. Toda a mãe ou pai já ou pela situação acima. O nosso papel não se restringe a meros reprodutores ou geradores. Isto é fácil e nada dolorido. A parte que nos cabe neste latifúndio é bem superior a qualquer área medida. Uma vez latifundiários de um extenso pedaço de vida, compreendemos ser nossa função supri-los para sempre. E nem nos perturba a ideia poetica de padecer no paraíso. Não nos assustam as noites mal dormidas. Não nos cansam as frequentes reuniões no colégio. Não nos envelhecem as gripes, as notas baixas, as teimosias. Faz parte do pacote.
Até o dia em que no afago rotineiro daquele cabelo macio, tornamo-nos confidentes das preocupações dos filhos do mundo. Nem sempre temos soluções. E saímos frustrados. Até o dia em que somos parceiros das expectativas e dores de amores, trabalhos, saúde, presente e futuro. E não sabemos dimensioná-las e nem mesmo curá-las. Ficamos doloridos. Até o dia em que acalentamos aquele corpo tão conhecido e não temos mais o poder terapêutico de massageá-lo e acalmá-lo. Nem tampouco aquele beijo milagroso de mãe sara todo dodói. E amos a viver rezando para que o mundo não maltrate tanto o seu filho.
Nada disso ocorre do dia para a noite. É uma evolução. Muito devagar na infância, quando assemelha-se ao brinquedo "Mamãe, posso ir", e muito rápida na adolescência, quando parece crescer na proporção geométrica. Nada acontece sem a nossa participação. Existe uma cumplicidade. Muito camuflada quando a nossa presença já é descartada em cinemas, shoppings, festas e baladas. Nada escapa do nosso colo a um simples abrir de braços. Existe uma reciprocidade. Muito a favor dos filhos, quando nossos finais de semana são solitários, nossos sonhos parecem pesadelos e nossa oração é para que sobrevivam. Afinal, agora são filhos do mundo.