Não tem saída?
São quase 11 e meia da manhã e a atendente do balcão do ambulatório do SUS do Hospital Santa Rita do chamado Complexo Hospitalar …
São quase 11 e meia da manhã e a atendente do balcão do ambulatório do SUS do Hospital Santa Rita do chamado Complexo Hospitalar da Santa Casa de Misericórdia, guichê 1, me diz: os médicos começam a atender a partir de 13h30min. Todas são moças educadas, estas atendentes. E sobrecarregadas. Eu havia tentado confirmar a consulta por telefone: SUS não tem perdão! Por telefone, paciente do Sistema Único de Saúde não marca nem confirma consulta. Ponto final. Tem de ir ao hospital, ao vivo e
O mais curioso é que o cartão de identificação do paciente diz, com todas as letras: "o atendimento é realizado pelo horário agendado e não pelo horário de chegada". Certo? Errado! A medida que se confirma a consulta, a atendente apanha a pasta do paciente e a coloca numa pilha que eu achava estar em uma ordem a ser obedecida para a chamada. Não é.
Quando o médico chega, pega as pastas e, com certeza, embaralha tudo.
Detalhe: o mesmo cartão diz "Chegar 20 minutos antes do HORÁRIO AGENDADO para a consulta. Atrasando mais de 30 minutos, a consulta será remarcada. Não podendo comparecer, avisar com antecedência".
Ok. Vamos nós. Eu e meu velho. Chegamos cedo. Estamos esperando. Meu pai: 80 anos, 8 AVCs, cardiopata, portador de Parkinson, de Alzheimer e, claro, câncer de próstata - doença esta que, diga-se de agem, vem sendo controlada a contento não só pela medicação, mas pela disciplina que temos em não deixar de ir às torturas, quer dizer, às consultas trimestrais.
O salão de espera ainda está circulável. Eu não sabia, porque não li em lugar algum, nem vi em qualquer veículo, uma notícia a respeito que seja sobre o fato de que, agora, pacientes do SUS com problemas de câncer podem voltar à consulta confirmando esta consulta já a partir de 9h, ali, na boca do balcão. Antes, se chegava ao meio-dia, pegava-se a ficha e aguardava-se a entrada das equipes das diferentes especialidades oncológicas. Teoricamente, essa mudança faria tudo andar mais rapidamente. Não acontece, no entanto.
Então, sentamos, eu e meu pai. Pego um bloquinho, caneta, e vou anotando o que vejo, observando as pessoas
Um jovem homem, magro de dar dó, com os gânglios do pescoço que parecem bolas de golfe, volta do balcão e senta ao lado da esposa, uma jovem grávida.
Uma e meia da tarde. Nada das equipes médicas. O salão fervilha de gente. A atendente pede que todos aguardem sentados, mas não há lugar para todo mundo. Vejo gente dormindo nas cadeiras, cabeça apoiada na parede, o sol já entrando salão adentro, os ventiladores não dando conta de espantar o calor. Um homem, com um olho cego, reclama, coloca a cabeça entre as mãos, cabelos totalmente brancos, magérrimo. Reclama. Levanta várias vezes.
Num espaço acima do guichê de número 1, vejo uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, com seu manto negro bordado de dourado. Na parede interna, um crucifixo.
Ao meio-dia e 35 minutos, a moça havia chamado a ficha 176. Iria a mais de 200 nesta tarde.
Por volta de 14h, começam a chegar os médicos.
Uma moça simples, de Camaquã, que acompanha a mãe, paciente de cirurgia oncológica, me pergunta como se faz para comprar café na máquina. Conta que o ônibus delas sai às 3h da tarde e que elas vão ter de dormir ali, porque não têm onde ficar, se se atrasarem. Serão das últimas as serem atendidas, perto das 16h.
O salão vai-se esvaziando. Vejo gente que chegou depois de meu pai ser chamado para a consulta. Falo com uma funcionária e ela me diz: os médicos estão com as pastas e estão atendendo. Ou seja: ela não tem o que fazer.
Meu pai está impaciente. Almoçou às dez da manhã e há pouco lhe servi um café com leite. É um privilegiado. Tem gente que está
Quase quatro da tarde, chamam seu nome. O salão já está quase vazio. Somos dos últimos. Junto, chamam o nome de um outro portador da mesma doença, um homem do interior, que chegou às 9 da manhã para pegar a tal ficha para ser atendido cedo e está irado.
Entramos. O jovem médico, um residente, pergunta pelo resultado do exame de sangue que exibe o nível de PSA, rotina de todo portador de câncer de próstata. Respondo-lhe que está no sistema, ou seja, no sistema de informática do hospital, ali ao toque de um dedo. Meu Deus: o resultado está diante dele, no computador, é só ar o nome do meu pai, mas ele se irrita e me diz que eu deveria trazer o resultado em mãos.
Pergunto se é porque é SUS e ele se enfurece. Me chama de tu, me olha como se fosse me botar porta afora, diz que não, que o procedimento vale para todos há mais de um ano. Argumento que há anos trago meu pai à consulta e que nem há um ano nem há menos tempo me disseram que os médicos não poderiam ar o sistema para ver o resultado do exame. Reclamo da má comunicação da Santa Casa, que não tornou esta decisão pública. Ele me responde, atrevido, que o negócio dele é cuidar do paciente.
Lembro que, faz pouco, eu estava diante da porta da informática, que dá para o salão de espera. Penso: intranet prá quê?
O residente, já aparentemente mais contido, atende meu pai nos dois minutos habituais da consulta de SUS e, na saída, como de hábito, recomenda a volta em três meses e eu acrescento: "Então, continua fazendo a quimio?" E ele, rápido: "Não é quimio, é CASTRAÇÃO QUÍMICA, para evitar que o câncer progrida".
Fico muda. Meu pai, ali, na sua humildade de pobre, uma vida de sacrifícios consertando sapatos, faz de conta que não entende aquela expressão que sempre ouço aplicada para estupradores em tudo que é filme ou enquete de internet: castração química! Que sensibilidade! Estou diante de um garoto humanista!
O jovem doutor nem espera meu pai levantar-se da cadeira e já chama o próximo. Saímos ambos da sala como cachorros sarnentos.
Obviamente, enviei mail para a Ouvidoria da Santa Casa, Sindicato Médico, Cremers e até para meu colega Ivo Stigger (que não me deu resposta, mais uma vez), jornalista responsável pela revista da Santa Casa que em recente edição estampou matéria sobre a equipe de urologia e a importância dos exames preventivos e dos tratamentos.
A Ouvidoria, dia seguinte me respondeu. Parabéns a Dalva Menezes Neto por sua imediata atuação: na mesma data, recebi telefonema da enfermeira Teresa, responsável pelo ambulatório SUS do Santa Rita. Gentil, eficiente, articulada, ela me falou sobre as dificuldades do trabalho, o elevado número de pacientes, a lentidão, as equipes nem sempre completas. Correta, se desculpou pela atitude absurda do médico residente, garantindo que ela seria levada ao conhecimento da chefia e que o moço seria devidamente chamado à atenção.
E mais: me confirmou que este jovem de avental branco, tão cheio de si em sua pose de semideus, não falou a verdade quando disse que há um ano não podia ar o sistema para ver o resultado do exame de PSA. Ele pode E DEVE buscar os resultados no computador que ali está para isso e para exibir a ficha do paciente, me disse Teresa.
Que vergonha, heim, doutor! Mentir com convicção! E me pergunto a razão. Para não perder 30 segundos? Me pergunto por quê alguém enfrenta toda a tortura de um vestibular difícil como este para medicina, teoricamente para se tornar um profissional voltado a salvar vidas, e termina se mostrando um ser insensível, grosseiro, incapaz de entender sua função.
Como pode ser tão cego e não enxergar o que há em volta: aqueles milhares de doentes, a maioria idosos, pobres, frágeis, implorando atenção e, se possível, na impossibilidade da cura, que minorem seu sofrimento?
Acho que está na hora de as seleções para médicos levarem em conta, além da capacidade de entender de doenças, medicamentos, exames, etc, a humanidade do candidato.