Não insista, a vida é curta

Se você acha que vai dar errado, já deu. (Murphy)Se não está dando certo, já não deu. (M.A.) Ele retirou do bolso um envelope …

Se você acha que vai dar errado, já deu. (Murphy)
Se não está dando certo, já não deu. (M.A.)


Ele retirou do bolso um envelope e releu o roteiro: Roma, Florença, Siena, Veneza e Atenas. Duas semanas na Grécia, uma em terra, outra num cruzeiro pelas ilhas mais interessantes. Quatro dias em Paris, outros em Londres e volta para o Rio.


Olhou pela janela do avião e avistou, muito longe, um aglomerado de luzes.


Consultou o relógio e teve a certeza que avam a muitos quilômetros pela costa de Dacar.


Calculou que em torno de duas horas ariam à margem de Casablanca, cidade que virou filme e onde estivera há mais de dez anos. Olhou para a companheira - Yole - que ao lado dormia profundamente.


Não conseguiu fugir às lembranças dos últimos acontecimentos, uma sucessão de decisões e uma surpresa não imaginada, mas acolhida com entusiasmo. Jamais se recusara a enfrentar o novo. Yole era a surpresa.


Vivera quatorze anos de uma união que se deteriorava na insistência da companheira, cada vez em ciclos menores, de insistir naquilo que depois ganhou o rótulo de "discutir a relação".


Não dava maior importância àqueles surtos, driblava os assuntos e deixava a vida correr.


Uma tarde, num almoço, resolveu prestar mais atenção às queixas e concluiu que, procedentes ou não, cabia a ele os últimos acordes daquela sinfonia que se pretendia inacabada.


Terminado o almoço, pousou os talheres e abortou um futuro de mesmices. Recusou-se, até, a dar explicações, seria prolongar uma conversa que, para ele, perdera totalmente o sentido.


Anunciou o fim e, nos dias subsequentes, providenciou tudo o que se referia a uma separação civilizada.


Meses depois, enredou-se numa aventura amorosa que parecia caminhar para algo mais sólido. Certa tarde, em casa dela, antes do que ele pretendia ser uma gratificante performance sexual, ela começou, em tom de queixa, a tentar "discutir a relação".


Sem uma palavra, dirigiu-se ao chuveiro e ficou imaginando se merecia, depois de tantos anos, iniciar novo ciclo de ladainhas.


Ela acompanhava em silêncio, olhos interrogativos, o ato dele vestir-se sem palavras, colocar nos bolsos seus objetos, dirigir-se para a porta e, antes de sair, dizer em tom definitivo: Adeus.


Dias depois, para evitar outros telefonemas aos quais não atendera, enviou uma pequena carta, cuja síntese era "não discuto relação".


Há dois meses conhecera Yole, na cafeteria de um museu, e da observação de uma escultura instigante, nasceu uma conversa que, duas semanas depois, continuou na cama.


Apesar de anos mais jovem, Yole tinha experiência de vida e, como ele, não "discutia relação". Defendia a tese que tentar salvar aquilo que não está dando certo, no mínimo, era um sacrifício inútil. Havia que partir para a tentativa do certo.


Fizeram o pacto: viver juntos enquanto fosse lucro.


Ela foi morar com ele e o acordo era que, se tudo acabasse como se fosse uma quarta-feira de cinzas, ela sairia.


Sem bater a porta.


Inté.


PS.


Quando eu morrer, vou sentir saudades minhas.


O ano que em novembro nos levou a irmã Célia, ano que já nos entristecera com os acordes finais de Dorival Caymmi, com as cortinas que se fecharam para Dercy Gonçalves, Rubem de Falco e Fernando Torres, com as últimas páginas de Fausto Wolff e com a despedida da professora de teatro e escritora gaúcha Olga Reverbel, fechou com um soco na minha cara: Fábio Sabag.


Reproduzo hoje a parte inicial de minha crônica publicada aqui em 8 de dezembro:


"Sampa


Alguma coisa acontece no meu coração


Que só quando cruza a Ipiranga e Avenida São João. (Caetano Veloso)


- Você!


O dedo indicador que apontava para mim era do Fábio Sabag, que, em 1957, resolveu vir para o Rio e acumulou todos os prêmios de TV como produtor e diretor do programa infantil Teatrinho Trol.


Enorme fenômeno de audiência, o programa da TV Tupi, também chamado de Vesperal Trol, ia ao ar às duas da tarde dos domingos e esvaziava bastante as ruas do Rio, pois os adultos dividiam poltronas e tapetes com a criançada.


Entre artistas de renome, Zilka Salaberry era a bruxa de plantão (mais de 500 programas) e assim mesmo adorada. A primeira a pilotar a vassoura voadora foi Fernanda Montenegro.


Mas o "Você!" aconteceu na noite de uma quarta-feira de 1952. Sabag descia a Avenida Ipiranga em direção a São João, viu-me defronte ao Jeca, tradicional "point" de artistas, e abriu o jogo. Na tarde de sábado daquela mesma semana, substituindo uma pessoa que adoecera, eu, com toda a majestade de um rei, estreei na televisão como ator.


Segunda-feira, entrando num bonde fechado - conhecido como "camarão" -, já de volta à condição de plebeu, fui reconhecido por um garotinho:


- Olha o rei, olha o rei!


Nesse dia do "mico", aprendi a lição: quem trabalha em veículo de massa não pode viajar em veículo de massa.


Anos mais tarde, eu morando em Porto Alegre , Sabag me pagava esse "mico" quando eu vinha ao Rio com mais tempo. Ele me entregava a direção de um Trol e o respectivo cachê.  De tudo isso restou uma sólida amizade iniciada na Biblioteca Municipal paulistana.


Na última vez que nos encontramos, a conversa começou pela pergunta essencial:


- Feliz, Mario?


- Sim, e você?


-Também.


Semanas atrás, tive que digerir uma tristeza naquela esquina celebrada por Caetano: o Jeca virou suco com um nome insofismável: Uva & Cajú. Esse absurdo acento em caju, assassinado na reforma ortográfica de 1943, exposto na fachada, fica por conta do nível geral?"


Adeus, irmão, a gente não se vê mais, inda que - por ser etéreo - o amor permaneça. 

Autor
Mario de Almeida é jornalista, publicitário e escritor.

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