Não. A orla é de todos
Não foi um caso de amor à primeira vista. Nem mesmo uma paixão avassaladora e não correspondida. Talvez obra deste velho e imprevisível destino. …
Não foi um caso de amor à primeira vista. Nem mesmo uma paixão avassaladora e não correspondida. Talvez obra deste velho e imprevisível destino. Quem sabe, estava escrito nas estrelas? São hipóteses que merecem um estudo. As respostas ainda me são insuficientes. O fato é que amei Porto Alegre ainda na barriga da minha mãe. Quando ela subia a Espírito Santo, rua que desemboca ao lado do Palácio Piratini, empurrando o carrinho de nenê com a minha irmã, dois anos mais velha, e eu sacolejando no seu ventre, incomodada, pedindo para sair antes de chegar à Rua Duque de Caxias, já gostava da cidade.
Mais tarde, fazia o mesmo roteiro com minha mãe e meus irmãos. No sentido inverso. Desta vez, descíamos a lomba, depois da minha aula no Colégio Paula Soares, onde estudei até os dez anos. Uma praça na esquina da Rua Fernando Machado com a Espírito Santo tornara-se parada obrigatória. Na infância, tomei banho em Ipanema balneável. E, no início da adolescência, usava o calçadão de Ipanema para fazer o eio juvenil no domingo. Com as amigas da Rua Doutor Mário Totta, finalizávamos o domingo trocando o chimarrão de mãos, e eu tomando umas batidinhas, porque nunca gostei do mate amargo.
O caminho não importava. A verdade é que sempre fui eternamente apaixonada pela capital gaúcha. E o sentimento foi recíproco. Quando eu era um projeto de vida, criança, adolescente, adulta e agora mãe. Mas o que me cativou, sem dúvida, em Porto Alegre, foi o seu jeito moderno de permanecer antiga, a sua juventude, apesar dos 237 anos, o carinho que ela demonstra com seus moradores, a hospitalidade com o turista. A cidade, parece, abre seus braços largos e amáveis lá do Guaíba, cuida dos habitantes com os olhos do Laçador, oferece a Redenção ou o Parcão para os finais de semana ensolarados.
Porto Alegre tem peculiaridades que fascinam. No mapa, ainda constam ruas antigas, residências com estilo açoriano, avenidas que misturam asfalto e paralelepípedo, um muro que isola o rio, lago ou estuário Guaíba. No mapa poético, a cidade foi descrita pelo poeta Mário Quintana, associando as ruas que ele não conhecia ao mistério da morte anunciada. Mário disse: "há tanta esquina esquisita, tanta nuança de paredes, há tanta moça bonita, nas ruas que não andei (e há uma rua encantada que nem em sonhos sonhei)".
O meu namoro com Porto Alegre, que já foi testado com convites para trabalhar em outras cidades, viagens de turismo para outras capitais, é daqueles que não quer terminar. Que nada consegue esfriar. Que as fofocas não chegam a arranhar. Mas foi apimentado. Num recente evento do movimento Poetas Del Mundo, em Porto Alegre, com poetas do consulado gaúcho, a jornalista da Revista Caras, em Paris, Diva Pavesi, produtora cultural paulista, naturalizada sa e que vive na Europa há 22 anos, confidenciou: "De alma e do coração, aqui vi o por do sol mais belo do mundo".
A minha lua-de-mel com a capital gaúcha enfrenta um capítulo decisivo no domingo, dia 23, quando a população está sendo convocada a votar, em consulta popular, a favor do Pontal do Estaleiro, que significará a permissão de prédios residenciais na orla do Guaíba, uma descaracterização total daquela área, a entrega de algo público à exploração da iniciativa privada. Ou votar contra. Basta marcar não. Você evitará a privatização da orla, dirá que basta de desrespeito com o que é público, lembrará que não se deve vender a natureza.