Na guerra como na guerra

Não foram só os 20 exemplares surrupiados pela Chica Espinoza que sobreviveram da edição do Correio do Povo, de 20 de setembro de 1972. …

Não foram só os 20 exemplares surrupiados pela Chica Espinoza que sobreviveram da edição do Correio do Povo, de 20 de setembro de 1972. A história, pouco conhecida, em nada desmerece a façanha da Chica, mas mostra o quanto amavam a Caldas Júnior os que lá trabalhavam naquele tempo.


Quando foi sabida que a apreensão dos jornais era inevitável, o pessoal da oficina pretendeu resistir. Naquela época da pré-informática, com o off-set recém-aperfeiçoado para imprimir tiragens maiores, as páginas dos jornais eram montadas em quadriláteros de ferro, as "ramas", compostas por barras de ferro que, na falta de coisa melhor, podiam ser usadas como porretes.


Havia relatos de que, nos anos 30, a polícia do governador Flores da Cunha tinha sido intimidada a não "invadir" o Correio do Povo, seguindo as ordens do "mandão", como o apelidara Breno Caldas em um "suelto" antológico. No início dos anos 60, as mesmas barras de ferro tinham sido mobilizadas para um confronto que felizmente não houve, quando o governador Leonel Brizola mandou a Brigada Militar cercar o prédio da Caldas Júnior.


Naquela madrugada de 20 de setembro de 1972, conseguiu-se convencer o pessoal das oficinas que os tempos eram outros e qualquer resistência, além de inútil, podia resultar em derramamento de sangue. Ninguém, entretanto, procurou demover o pessoal da expedição, de cruzar os braços e de se negar a carregar os caminhões do Exército com os jornais apreendidos.


A ditadura teve de convocar estivadores para a tarefa. Assim mesmo, houve uma última escaramuça, com o pessoal da remessa aumentando a pressão do fitilho de plástico que amarrava os jornais, endurecendo e transformando cada pacote em um verdadeiro tijolo, jogado "carinhosamente" nos braços dos estivadores. Foi necessário parlamentar alguns minutos para mostrar que todos eram cativos, a remar na mesma galé.


Enquanto essas coisas tinham curso, a Polícia Federal cuidava de fundir o chumbo da composição das páginas e das telhas montadas na rotativa, para impedir qualquer tentativa de fazer nova impressão do jornal apreendido.


Escapou um pequeno detalhe: o "flan", a lâmina de asbesto onde, depois de moldadas as páginas sob pressão, eram fundidas as telhas. Tão logo a Policia Federal foi embora, as telhas foram refeitas e uma tiragem em torno de 1 mil exemplares foi impressa.


No dia seguinte, Alcides Gomes, gerente de circulação do Correio do Povo e amigo querido, me chamou para entregar um exemplar da edição apreendida e contar esta história. Apesar de ter permanecido na redação com Tito Tajes até um pouco depois de a Polícia Federal ter ido embora, eu não percebera nada.


Perguntei ao "Cidoca", como chamávamos carinhosamente o Alcides Gomes, se ele não estava se arriscando demais. Respondeu que, se a Polícia Federal havia apreendido toda a edição, só sobre seus próprios elementos é que poderia recair qualquer suspeita.


E soltou uma gostosa risada. A mesma que espero de quem leia esta relato, tantas décadas depois.

Autor

Jayme Copstein é jornalista, com atividade em jornal e rádio desde 1943,com agens pelos principais veículos de Porto Alegre. Trabalhou 22 anos no Grupo RBS como apresentador de programas e comentarista de opinião da Rádio Gaúcha, e atualmente é colunista do jornal O Sul e apresentador do programa 'Paredão', na Rádio Pampa. Detentor de vários prêmios, entre eles, Medalha de Prata (2º lugar) no Festival Internacional do Rádio de Nova York (1995), em 1997 publicou "Notas Curiosas da Espécie Humana" (AGE). Seu livro mais recente é "A Ópera dos vivos", editado em janeiro de 2008.

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