Motta Coqueiro e a pena de morte
Um dos mitos ainda persistentes na História brasileira é o da abolição da pena de morte no Brasil, após o enforcamento do fazendeiro Manoel …
Um dos mitos ainda persistentes na História brasileira é o da abolição da pena de morte no Brasil, após o enforcamento do fazendeiro Manoel da Motta Coqueiro, em 6 março de 1855. Fora condenado por mandar matar Francisco Benedito e a mulher, e mais seis filhos do casal, para desocupar o pedaço de terra que o colono cultivava com a família, como meeiro. Escapou da chacina apenas a filha mais velha, de nome Francisca. O palco da tragédia foi a Fazenda Macabu, então parte de Macaé, hoje município de Conceição do Macabu, interior do Estado do Rio de Janeiro.
Segundo o mito, D. Pedro II, para reparar o erro judiciário, nunca mais autorizou a execução de criminosos, comutando todas as subseqüentes condenações à morte, inclusive a de escravos, em prisão perpétua. O desmentido é do próprio imperador, já no exílio, quando registrou em um de seus cadernos de notas que, nos últimos 30 anos, não houvera nenhum enforcamento no Brasil.
Feitas as contas por essa anotação, pelo menos até novembro de 1869, ou 14 anos depois da execução de Motta Coqueiro, a pena de morte ainda era aplicada. Mas a própria informação de Pedro II é equivocada: o último condenado à pena capital foi enforcado na cidade de Pilar, Alagoas, em abril de 1876 - 21 anos após Motta Coqueiro e 15 anos além do prazo fixado pelo imperador.
Esta última execução, a do escravo Francisco, por ter assassinado um casal de hoteleiros, foi documentada pelo historiador alagoano Felix Lima Junior, cuja obra ("Última Execução Judicial no Brasil") em 1979 teve reedição da Editora da Universidade Federal de Alagoas, a Edufal. É possível que, mesmo depois da data aludida, encontrem-se mais registros da aplicação da pena.
Como observa o historiador gaúcho Alfredo Ferreira Rodrigues, em seu "Almanak do Rio Grande do Sul" de 1903, ao apresentar uma lista de 15 execuções no Rio Grande do Sul, sem contar outras 7 referidas pelo historiador Manoel José da Silva Bastos: "A relação, organizada pela leitura de jornais da época, de deficiente noticiário e com muitas lacunas nas coleções, é de certo incompleta, mas basta para assinalar que o imperador, nos primeiros 16 anos de seu reinado autônomo, não se condoía da condição do escravo. E? certo que mais tarde procurou resgatar essa falta de sentimento humano, atuando-se abertamente na corrente abolicionista. Não se lhe tire esta glória, mas também não se lhe queira emprestar uma auréola que não mereceu."
A referência de Alfredo Ferreira Rodrigues ao "sentimento humano" do imperador, pois os réus executados eram todos escravos, permite ressaltar que Motta Coqueiro, caso incomum de homem branco condenado à pena máxima por crime de morte, envolveu disputa de poder político e também posse da terra.
O processo foi dissecado pelo desembargador paulista Emeric Levay, em matéria do portal do Tribunal de Justiça de São Paulo ("O caso Mota Coqueiro: atualidade de um velho tema" - 15 de janeiro de 2007). O desembargador Levay demonstrou que o romance de José do Patrocínio, "Mota Coqueiro ou a pena de morte", origem do mito de erro judiciário, "não encontra suficiente respaldo nas provas colhidas no curso do processo".
Motta Coqueiro foi julgado duas vezes, outras duas vezes apelou às instâncias superiores, a última com decisão desfavorável publicada em 12 de maio de 1854, e ainda pediu clemência ao Imperador, negada em 17 de fevereiro de 1855. O processo consumiu, ao todo, quase três anos.
A tragédia prova mais uma vez que a vida copia a ficção: a filha sobrevivente de Francisco Benedito estava grávida de Motta Coqueiro e o pai manipulava a situação, tentando obter um quinhão das terras do fazendeiro para o bebê.
Motta Coqueiro não concordou e decidiu expulsar Benedito e sua família, oferecendo-lhe indenização pela benfeitorias que havia feito. Diante da recusa do colono, mandou escravos expulsá-los de lá.
Segundo o desembargador Emeric Levay, a defesa de Motta Coqueira insinua que ele, "por intermédio de seus escravos, apenas pretendia expulsar de suas terras o referido agregado, culminando essa ordem na trágica chacina, por excesso de executores do mandato criminoso, que atearam fogo na modesta habitação da vítima, com intenção de destruir os corpos amontoados num cômodo, da casa, mas providencialmente abortada pela chuva que caíra durante a madrugada".
O mito ou a polêmica da inocência de Motta Coqueiro nasceu tempo depois, com um romance de José do Patrocínio, sem base alguma nos fatos. A verdade é que Motta Coqueiro não foi enforcado por ter mandado matar Francisco Benedito. Muitos crimes tão cruéis, e até mais, foram cometidos por outros donatários deste país sem que nada lhes acontecesse.
Motta Coqueiro tinha contra si a inimizade de outro poderoso, André Ferreira dos Santos, com quem disputava a liderança política local de Macabu, e também a de um primo, Julião Baptista Coqueiro, de quem na juventude roubara a noiva e por isso o tornara inimigo irreconciliável.
Foi o prestígio político de seus desafetos que levou Motta Coqueiro ao patíbulo. O que dá muito a pensar, quando se levanta a tese da pena de morte no Brasil do hoje. Uma indagação preliminar se torna obrigatória: será que o país mudou de lá para cá?