Morrer de rir

Há uma intrínseca dose de sacanagem oculta nas piadas que mencionam pessoas portadoras de necessidades especiais? Talvez. Mas nunca o preconceito, como querem alguns. …

Há uma intrínseca dose de sacanagem oculta nas piadas que mencionam pessoas portadoras de necessidades especiais? Talvez. Mas nunca o preconceito, como querem alguns. Brasileiro não odeia uma pessoa com disfunção do aparelho fonador, seja um gago ou um fanho. Mas quis o imaginário coletivo achar estas pessoas engraçadas, porque, a despeito de suas tragédias pessoais, elas são parte do anedotário, da legenda que traz consigo a gargalhada inocente, desprovida do preconceito malicioso, a exemplo do tombo dos outros. É assim, pelo simples fato de a narrativa, da piada em si, conter ingredientes dramáticos cuja tensão leva à descarga emocional pelo riso, é a mecânica de qualquer piada que se preze.


Fico imaginando uma pessoa portadora deste tipo de necessidade processar criminalmente a outrem por constrangimento moral. O réu, para robustecer a sua defesa e demonstrar que agiu de boa fé, repete a piada de fanho, ou de gago, na frente do juiz. Sua excelência, refém de um rigor exagerado da lei, prepara-se para ler a sentença e, sem nenhuma razão aparente, emudece. Gotas de suor escorrem da sua calva, seu corpo estremece a revelia da  magistratura solene. O som proferido pelo piadista contrariou o mau humor do texto conspícuo. Vossa Excelência desaba num riso impróprio e contagiante, e uma onda de risadas varre os jurados e a platéia formada por curiosos e estagiários do Direito. É o riso, cruel e intrancafiável como o vento.


Pessoas com dificuldade de expor os seus sentimento são presas fáceis do riso que traz o risco de sufocar, de engasgar, de criar o mal súbito. Há alguns anos, assisti a um show de Jô Soares, no tempo em que o Jô Soares era muito engraçado, ou eu era muito ingênuo (às vezes gostaria de ser ingênuo novamente). Havia uma senhora sentada duas fileiras à frente de onde me encontrava. De repente, a recatada e elegante senhora de cabelo azul prateado começou a rir, e logo a guinchar, e depois uivar. Fazia isso fora do timing da piada. O gordo, no palco, desenvolvia o repertório, mas a senhora, por razões de foro íntimo, ficou perturbada com a piada anterior, e ria compulsivamente. Seus pulmões não davam conta, o guincho em timbre de soprano era uma alerta, ela estava ando mal. O marido assustado tentava socorrê-la, o lindo penteado da mulher desabou, seus óculos de delicadas armações douradas voaram para longe, e sua pele já apresentava um tom azulado assustador. Com a ajuda de três voluntários, o marido tentou carregá-la para fora, mas, ao fazerem, suspendeu seu corpo no ar, uma cena bufa, grotesca. Ela se debatia e gargalhava em completo descontrole, desta vez emitindo gritos agudos: "Aaaaiiiiiiiii, aaaaaaaaiiiiii". A mulher estava morrendo de rir.


O Jô ficou observando com uma expressão séria, e, claro, a platéia veio abaixo e logo todos se retorciam de rir, à beira da histeria coletiva. Não por causa do gordo, mas pelo contágio da mulher, ou pelos dois motivos. Tive uma rápida impressão de que o comediante estava preocupado. Aquilo não era mais um show, era um incidente de proporções imprevisíveis. O gordo bateu palmas, pediu silêncio, depois xingou a platéia, falou sério, pediu calma, e novas ondas de riso convulsionavam a todos. Vi gente sair ando mal.


Felizmente há circunstâncias graves e  solenes -  em que o riso é inaceitável e até mesmo imoral -, no entanto as pessoas podem se proteger valendo-se de recursos histriônicos e, mesmo assim, convincentes. Por exemplo, no silêncio consternado de um velório, súbito ouve-se um prosaico pum, sonoro; indisfarçável. Em geral o autor se denuncia ao tossir e pigarrear simultaneamente, e depois, sem nenhum motivo, dizer: "Ai, ai ". Óbvio, ali há pessoas vitimadas pela dor, mas outras são apenas agentes solidários, amigos e conhecidos da família.  Portanto, não espanta se estes, ao ouvirem o som  desagradável e impertinente, de modo brusco ponham seus lenços contra o rosto e comecem a chorar de forma incompreensível. Não são nada do morto, porque  choram assim, estremecidos e desproporcionais?  Estão realmente chorando? Por que uns se refugiam nos banheiros e outros saem para fora do recinto? Que pouca vergonha. O riso fora de controle, quando emerge dos nichos infantis da natureza humana,  não respeita nem a morte. 

Autor

Paulo Tiaraju é publicitário, diretor de Criação da agência Match Point, cronista e violeiro. Foi o primeiro criativo gaúcho a ganhar o prêmio Publicitário do Ano, concedido pela Associação Riograndense de Propaganda (ARP). É pai de Gabriel Nunes Aquino.

Comments