Mito ou mortal
Fu Lana, quando escreve, entra em surto. Não vê ado, nem presente. As letras, sonoras e desimpedidas, fazem o estrago que conseguem. Pobres, ao …
Fu Lana, quando escreve, entra
A versão de Che, por exemplo, é muito saborosa para quem é de esquerda. Em primeiro lugar, Benicio Del Toro é o Che. Ele não representa. Ele é. Enorme, simpático, carismático, sensível, adorado Che.
Buenas. a que Fu Lana percebeu o que todos já sabem: nem todo mundo é de esquerda. Ela é tão azarada que assistiu ao filme justamente na cadeira ao lado de uma cidadã que deixou bem claro, não pensa do mesmo jeito. Para uns, o filme é por demás ideológico e meio que força a barra, se é que você me entende.
Pra começo de novela, escolheu um cinema daqueles que adota o sistema de lugares marcados. Só essa novidade civilizada já revoltou a companheira gorducha, vizinha de Fu Lana. Bem sentada no assento que foi adquirido, é claro, pela nossa sofrenilda de plantão, a farta senhora recusava-se a trocar de lugar: mas há tantas cadeiras?, apontava. Insistindo, Fu Lana, que também não é uma flor delicada, fez com que a senhora arredondasse seus trocentos quilinhos para a cadeira ao lado. Ficaram as gentis madames disfarçando os humores, bufando lado a lado.
Sendo assim, em uma das primeiras cenas
Baixarias à parte, ouviu uma frase prá lá de barraqueira: tu fica quieta, que é melhor. Fu Lana, gostando e ao mesmo tempo detestando a bravata, fez um SHSHSHS no ouvido da coitada.
Voltando ao filme, é curioso sentir que hoje teríamos medo de ser guerrilheiros. É intrigante como conseguimos entender a prática da pena de morte para os crimes cometidos entre os companheiros de guerrilha. Fantástico perceber como a lei do bem geral deveria sempre estar acima da lei do indivíduo. No entanto, será que foi assim? Che, o homem, não apresenta defeitos. O que se pode questionar. Romântico? Sim. Mas vale a pena ver Che. Para quem o conheceu e para quem o imagina é uma dose de bebida quente em um dia frio. Rejuvenesce e conforta.
A gorducha silenciou um pouco. Ainda assim, murmurava aos cochichos algumas críticas. Parecia que estava descontente com a dose de parcialidade
Quando a sessão parecia apaziguada, prosseguindo dentro da normalidade, um telefone tocou. Fu Lana percorreu com os sentidos de onde vinha aquele tilintar rídículo que marca nossa época e estava ali, a seu lado. A fofinha procurava o aparelho na bolsa, dentre centenas de saquinhos de bala e papéis variados, colocando-o na orelha e dizendo: tô no cinema?
Fu Lana fez um sonoro SHHSHSHSHS, como se a vizinha estivesse a duas filas dali. A gorda desligou o telefone e disse: a senhorita tem problemas em vir ao cinema? Novo SHHHSHSHS e Fu Lana obrigou-se a esquecer. Se entregou a Che e a Fidel, que convenciam estar vivos, naquele filme que mais parecia um documentário. Raúl, o irmão, hoje presidente, soa mais fraco. Rodrigo Santoro não está à vontade em um espanhol correto, quase soletrado.
No finalzinho, em uma cena insólita, maravilhosa, a gorducha finaliza com uma expressão gaudéria: mas capaz!!! Fu Lana levanta, atravessa as fileiras e senta mais adiante, para assistir à agem dos créditos. Nunca mais viu a tal senhora da cadeira ao lado e pensava: problemas para ir ao cinema, eu?
As versões realmente são diferentes dos fatos. Você pode estar lá e não ver do mesmo jeito. Imagine contar a cena 50 anos depois. Fica a mensagem do Che, que grudou na juventude. Espera-se que agora, com o filme, em duas partes, todos possam checar para ver se o personagem bate com o mito de cada um. Mas, de preferência, sente-se entre amigos. Para garantir.