Meu apreço imenso
Ando com uma música grudada na cabeça. Como não vejo novelas, para mim ela apareceu do nada e agora é só ligar a rádio …
Ando com uma música grudada na cabeça. Como não vejo novelas, para mim ela apareceu do nada e agora é só ligar a rádio e lá está ela. E eu cantando! Claro: "ela" está na novela Beleza Pura, da Globo, é o "tema de Rakelly e Robson", personagens da trama, que são ilustres desconhecidos para mim, mas famosésimos, com certeza, no resto do Brasil.
No começo, eu odiava a tal música. De repente, comecei a prestar atenção não só na letra, que pode ser um queixume banal de amor, mas no como ela é escrita. E gostei.
Estou falando de Esnoba, que ouço sempre com o grupo Moinho da Bahia e, segundo o portal Terra, é de autoria de alguém que se chama Márcio Mello. Impressionante é que esta musiquinha embalada, malemolente, já está até em site em espanhol, para até de ringtone.
O que mais me impressionou nesta letra (longa, por sinal) é o uso de certas palavras. Como apreço. Há quanto tempo não ouvia isso! Minha avó, minha mãe, o pessoal destas gerações falava apreço com a maior naturalidade. Mas ouvir a garotada de hoje não!
Fui ver o resto da letra e não é que o autor usa o pretérito perfeito, outra coisa absolutamente fora de uso nos dias de linguagem atropelada de bate-papo pela internet: "Disse que a vida mudara" e, mais além, "E o amor que eu sentira
Não valeu de nada
Pois tudo se acaba
Como num seriado banal?".
Mas pisa na bola quando se atrapalha e diz: "E que eu não tinha nada haver". Com certeza, queria dizer "eu não tinha nada a ver", forma preguiçosa de dizer "nada a ver com isso".
Como dá para notar, desde a semana ada ando envolvida com estas coisas da linguagem e da língua brasileira - que vai ar por mais uma reforma ortográfica. Por isso já vou recomendando que imprimam e montem um livreto com as dicas do Sérgio Nogueira no G1. É nossa única esperança de não cometer crimes muito graves escrevendo.
Lembrei agora, por ter falado antes em avó, que uma das minhas, a mãe de meu pai (uma bugra despachada, casada com um tropeiro, mal e mal sabendo o nome), dizia "vacê". Não era tu, nem você, nem vossa mercê, nem vosmecê: era vacê!
Que agonia me dava, eu, nota dez nas aulas de português da rigorosa dona Esther Menna Barreto, nos tempos de ginásio do Instituto de Educação General Flores da Cunha! Pois, hoje, aquela menina pretensiosa de 12 anos foi ao Aurélio, humildemente, para tirar a dúvida. E lá está: existem cerca de 30 formas diferentes de você. Incluindo?vacê! Perdão, vó Vicina, minha querida Universina Rodrigues Bairros e que já é lembrança num retrato em branco e preto há muitos anos.
Língua é isso. Para estar viva, tem de ir mudando. Agregando, decupando, engolindo esses e erres, enlouquecendo a gente na luta diária por registrá-la corretamente, ao menos em seu sentido.
A reboque deste eterno estado de renovação, que chega empurrado (e nos empurrando) pela própria vida, eu lembro que, no finado jornal Folha da Manhã, escrevi uma longa crítica sobre uma peça de teatro cujos nome e história a memória faz questão de esconder. Só tenho nítida a lembrança de ter repetido, vezes e vezes, o termo on the road. Muito faceira do meu feito, porque achei o resultado maravilhoso, moderno, nas pegadas de Jack Kerouac (que, naqueles anos 70, já tinha mais de 20 anos!) , tomei um choque quando um colega, a quem eu dera o privilégio de ler a matéria em primeira mão, perguntou, rindo debochadamente: "não acha que tem on the road demais?"
Ofendidíssima, creditei à inveja sua crítica e publiquei assim como estava. Hoje, me dá um frio na espinha quando lembro que eternizei uma besteira impressa, a me apontar, para sempre, que há que cuidar do que se escreve.
Por isso, declarei guerra a algumas palavras que grudaram, como a música do Moinho da Bahia, na cabeça do pessoal que está na bela faixa dos 20 anos. Acontece é uma delas. Tudo acontece! É como um e de mágica: a reunião acontece, o programa aconteceu, o evento (essa é outra, que, desgraçadamente, usamos adoidado) acontecerá. E, assim, acontecendo, todos os textos parecem imitação escrachada das velhas e anacrônicas colunas sociais dos anos 50.
Mas, como a língua anda sozinha, vai ver, em breve, acontecer estará liberado como o verbo mais versátil de todos os tempos. E, a exemplo do vacê da minha vó Vicina, vou ter de me desculpar com muita gente?por quem tenho um apreço imenso.