Memórias inventadas

ou pelo espelho grande, parou, voltou e encarou-se. Era um rosto de menino, não mais que cinco anos, cachos até os ombros, calças curtas, …

ou pelo espelho grande, parou, voltou e encarou-se.
Era um rosto de menino, não mais que cinco anos, cachos até os ombros, calças curtas, numa rua de cidade pequena.
Lembrou-se vagamente de uma foto igual, num remoto álbum perdido numa gaveta qualquer. Lembrou-se, ainda, que o sorriso deveria ser pelo pedido do fotógrafo em troca de um brinde que jamais recebera. Foi o seu ingresso definitivo no jogo da vida.

Ia voltar ao real de sua caminhada quando, no espelho, houve um clique e outra foto, como numa exibição de slides, surgiu no lugar do menino enganado.
Aproximou os olhos do espelho e reparou então que não era foto, era recorte de jornal, e lá estava ele, calça comprida, camisa clara sem botões, o nome do colégio se destacando no peito, segurando com força a bandeira do Brasil desfraldada ao vento e mais uma garota em cada lado. Ninguém com mais de 15 anos. Pelo esforço estampado no rosto, pelo ondeado da bandeira, supôs que até aquele momento uma das meninas havia segurado a ponta da bandeira.
Não dava para ler a legenda, mas estava claro, em negrito: Semana da Pátria. Sentiu a angústia do esforço e do medo causado pela força do vento e ou a mão pela superfície do espelho, tentando evitar a repetição daqueles segundos de um quase pânico à frente de um desfile escolar, ando pelo palanque das autoridades. Se praga matasse, Alfredão, o professor de Educação Física, teria morrido uns 30 anos antes.
O espelho, solidário, deu novo clique e, num palco, três jovens, duas jovens e ele envelhecido pela maquiagem, mãos dadas, cabeças abaixadas, revelavam o óbvio, eram artistas, num palco, agradecendo aplausos.
Quis segurar por mais tempo aquela imagem, reviver as emoções de uma noite de glórias, mas o espelho tinha pressa, virara um possesso exibidor de imagens. Como numa disparada de cavalo assustado, desvairado total, começou a exibir de forma alucinada imagens e mais imagens.
De repente, sacudiu com força a cabeça e percebeu de imediato que no espelho havia apenas sua imagem atual.
Percebeu também, inda que contrariado, que as lembranças de um ado muito remoto foram exigências da memória, um resgate do irresgatável.
No espelho, nada além de suas rugas.
Completara 80 anos na véspera, mas fingira que não era com ele.

Autor
Mario de Almeida é jornalista, publicitário e escritor.

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