Memórias de Outono

Por José Antônio Moraes de Oliveira

"O outono é o segundo inverno - cada folha é uma flor caída".

Vargas Neto.

As folhas amarelecidas dos jacarandás da Vasco da Gama anunciam que está por chegar a estação mais melancólica do ano. A mãe olha as nuvens cinzentas no céu e fala que o frio não vai demorar. Dá um suspiro resignado e vai em busca dos casacos e mantas no fundo dos roupeiros. E por vários dias, a casa cheira a naftalina e a guardados. Nos sobrados do bairro, as janelas são fechadas mais cedo, pois ninguém espera pelo anoitecer. As ruas ficam desertas e das chaminés sob a fumaça azul dos fogões a lenha.

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Pela janela embaçada, vejo os mesmos fios de fumaça azul subindo no céu do Norte. Estou em outro lugar, distante de casa e do ado, mas sinto que este outono vai ser mais triste do que os de antes, quando ainda havia tempo para  os poetas.                                          

De quando tentava - inutilmente - decorar o poema das folhas mortas de Jacques Prévert para o exame na Aliança sa. Agora, nesta tarde estrangeira, as ruas também estão molhadas e desertas e colares de luzes amarelas iluminam a noite precoce. Nos outonos de antes, quando as folhas cobriam a rua, o pai chegava cedo e ia esquentar as mãos perto do fogão. Era a nossa melhor hora, a mãe com as canecas de chocolate quente e nós ouvindo do pai que os colegas do escritório aram o dia de sobretudo e mantas de lã, ouvindo a ventania assoviar nos armazéns do cais do porto. 

Na sala, brilha a luz verde do "olho mágico" do Telefunken e o locutor da Rádio El Mundo alerta que uma nova frente polar chegou a Buenos Aires. O pai desliga o rádio, se serve de um clarete e boceja:

"- Vamos ter mais um agosto gelado".

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Muitos agostos depois, encontro o mesmo vento de agosto chegando do Guaiba, varrendo ruas, despindo árvores e cobrindo com folhas amarelas os canteiros da Praça da Alfândega. Como um replay de um filme em preto-e-branco, pessoas silenciosas e encolhidas em si mesmo buscam o calor dos cafés ou se refugiam no Clube do Comércio. No jornal, as janelas da redação estão fechadas e o matraquear das Underwoods enche o ar azulado da fumaça dos cigarros. O teletipo, antes silencioso, dá sinais de vida, expelindo boletins da Associated Press que precisam ser traduzidos. Nada de extraordinário parece estar acontecendo no mundo - enchente na China, desastre de trem na Índia, discursos fátuos na ONU e uns falecimentos desimportantes.

Os maços de laudas datilografadas já desceram para as linotipos, a redação se esvazia em minutos e a sirene da rotativa avisa que o jornal vai rodar. 

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Abraçado com o jornal de amanhã, alcanço ao abrigo de bondes a tempo de tomar o último Independência, que cruza solitário a cidade deserta, sem paradas pelo caminho. Na esquina da Ramiro Barcelos, recebo o abraço do mesmo vento gelado de outros tempos. Então, no caminho de casa, vindo de um lugar qualquer, ouço os versos de Jacques Prévert, aqueles que não decorei:

" Les feuilles mortes se ramassent à la pelle, Les souvenirs et les regrets aussi. Et le vent du nord les emporte Dans la nuit froide de l'oubli. Tu vois, je n'ai pas oublié (...)"

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem agens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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