Me dá uma moeda, tio?

Os olhos do brasileirinho de 8 anos de idade são vazios, não suplicam. Não se importam se você vai dar a moeda ou não. …

Os olhos do brasileirinho de 8 anos de idade são vazios, não suplicam.


Não se importam se você vai dar a moeda ou não. Em segundos o meu cérebro processou milhares de informações, entre elas  R$ 40 milhões do Detran,  R$ 900 milhões do Valérioduto, Daniel Dantas com o seu batalhão de advogados ganhando um milhão de dólares por habeas corpus.


- Ei tio, me dá uma moedinha para comprar um pão?


O que aquela criança está  fazendo descalça nesta noite molhada? Os pés das autoridades estão quentinhos, embaixo das cobertas; o estômago das autoridades a esta hora contém uma combinação de iguarias e vinho de fina casta, da melhor procedência.


Vai começar uma nova campanha para prefeitos e vereadores. Eles vão fazer promessas e se atacarão mutuamente. As crianças que morreram de desnutrição severa não irão ouví-los. Seus pais, apáticos e encardidos,  também não. Não consigo arrancar o carro e não dou a moeda. Fico no limbo, junto com a criança, num sinal fechado moral,  numa vergonha brasileira. O Brasil não é a esplanada de Niemayer, não é Glória Kalil. O Brasil é Sebastião Salgado, com suas fotos em que caixõezinhos brancos estão à  venda, pendurados na parede do boteco, junto com carne de sol e sandálias de dedo. O Brasil é Bispo do Rosário, mulato, genial e louco. É a maioria parda, conformada e silenciosa.


- Dá uma moeda, tio?


Não dou meu filho, não posso dar uma moeda, posso dar com a cabeça na parede quando te vejo aí, tão frágil, tão desamparado. Posso cerrar os dentes e arrancar o carro com uma revolta solitária que,  no próximo sinal, terá desaparecido. Se te der uma moeda não vou me perdoar. Porque se der a moeda vou ficar justo com a sordidez da mecânica política, jurídica, social e econômica que te botou no meio da rua às 23 horas de uma noite fria e molhada. Não quero ficar justo com esta engrenagem, com seus personagens, seus atores, suas vaidades, suas bocas cheias de dentes. Ninguém se importa com você, meu filho; nem seu pai, nem sua mãe devastada pela corrosão da miséria.Você está sozinho, eu não posso te adotar, aqui, no meio da rua, nem te dar uma moeda. O sinal  já vai abrir, tanta coisa que eu tinha a dizer, mas me foge a lembrança. E me sobe uma mágoa gaguejante e brasileira.  


O menino se cansou de fazer a mesma pergunta e, aos poucos, desapareceu nas sombras, indiferente.

Autor

Paulo Tiaraju é publicitário, diretor de Criação da agência Match Point, cronista e violeiro. Foi o primeiro criativo gaúcho a ganhar o prêmio Publicitário do Ano, concedido pela Associação Riograndense de Propaganda (ARP). É pai de Gabriel Nunes Aquino.

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