Maria sem sobrenome
A tarde de segunda-feira em Porto Alegre se apresentava estranhamente imprecisa. Alguns minutos, um sol de derreter o coração mais gélido. Depois, um calor …
A tarde de segunda-feira em Porto Alegre se apresentava estranhamente imprecisa. Alguns minutos, um sol de derreter o coração mais gélido. Depois, um calor que quase beirava os 36 graus com a sensação térmica. Intercalando este jeito instável de mostrar seu clima típico das "Águas de Março", a capital gaúcha, em determinados bairros, deixava uma chuva fina e insistente cair. Com uma agenda de compromissos para resolver, todos na área central da cidade, ignorei os avisos de que o tempo não estava definido, logo sujeito a chuvas e trovoadas, e migrei pelas ruas da minha Porto Alegre, até aquelas onde jamais andaria.
No primeiro item da agenda, meu estômago já embrulhou. E o tempo não teve nada a ver com esse problema. Ao sair de uma agência bancária, sentada no degrau, creio que conforme a idade, uma família inteira aguardava a caridade de qualquer um com as mãos estendidas segurando caixas de papelão. Toda turma liderada pela matriarca, que poderia chamar-se Maria, e cuidava dos cinco filhotes com olhos de lince. Maria, de sobrenome desconhecido, com certeza, não teria mais do que 30 anos, mas sinais de cansaço em seu rosto lhe conferiam a impressão de mais de 40 anos. Pudera, cinco filhos com pouca diferença de idade entre eles.
Se alguém perguntasse a Maria ou às outras que encontrei mais tarde na minha peregrinação o que elas mais queriam, ficaria espantado com a resposta. Os sonhos de consumo dessas mulheres que perambulam pelas ruas da cidade, equilibrando os filhos nos braços calejados, são sempre modestos e os mesmos: casa e comida para os rebentos. Nada pode ser deprimente do que não ter um prato de feijão com arroz para saciar a fome de um filho. Nada pode tornar uma mãe mais impotente do que não encontrar uma cama quente para sua cria dormir. Nada mais humilhante do que expor as crianças assim, em qualquer rua ou ladeira.
As Marias que mendigam nas esquinas das cidades não querem saber do último creme para rejuvenescer; do novo perfume lançado pela Lancôme; das roupas que as atrizes vestiam na cerimônia entrega do Oscar (nunca entraram em um cinema); e muito menos do cantor internacional que desembarca para uma estréia na capital. Elas desejam comida diária para alimentar as crianças. Nada muito sofisticado. O muito que sobra da mesa de todos ajudaria. Elas gostariam de roupas para tapar a nudez de seus filhos. Sem detalhes fashion. As peças que deixamos guardadas no roupeiro e que nunca mais usaremos serviriam.
Talvez até sonhem um pouco mais ousado e imaginem, com certa excitação, uma cama confortável para deitar com o marido, companheiro, namorado ou amante e, uma única vez, não fazer sexo sob os jornais. Quem sabe, junto, um método contraceptivo que lhe assegurasse que a prole não iria mais aumentar e, com isso, ela não seria forçada a tentar um aborto caseiro e nem construir mais um filho em seu ventre. As Marias que não aparecem nas revistas famosas, que não ensinam receitas culinárias e nem engrossam as filas dos supermercados nos finais de semana, ainda são maioria neste País.
Ai, meu Brasil brasileiro, meu mulato inzoneiro, terra de samba e pandeiro, onde a lua vem brincar e Ary Barroso cantou-te nestes versos. Ai, meu País de contrastes chocantes, de injustiça social, de indignidade de todos os tipos, mas que sempre oferece uma esquina, uma ladeira, um degrau de igreja para as Marias e suas famílias tentarem algo parecido, de longe, com cidadania. Como para se redimir. Porque essas Marias, repletas de dom e magia, merecem viver e amar como outra qualquer do planeta. Elas têm fé na vida. Nem desconfiam que 8 de março é o Dia Internacional da Mulher. E seguem misturando a dor e a alegria.