Maniqueísmos pós-modernos
O massacre na escola russa coloca em xeque a mídia engajada e os filósofos pós-modernos. Desde o 11 de Setembro, a discussão girava em …
O massacre na escola russa coloca em xeque a mídia engajada e os filósofos pós-modernos. Desde o 11 de Setembro, a discussão girava em torno da política imperialista de George W. Bush e do banditismo insano de Osama Bin Laden, assassino convertido em herói de muitas redações e diretórios por vingar o mundo submisso das agressões do Grande Satã. Consta que a deputada Luciana Genro integrou a confraria que levantou brindes nem tão envergonhados à queda das torres gêmeas. Embora tenha supostamente criticado o atentado, justificou-o - e, assim, o legitimou - como resposta lógica dos oprimidos ao imperialismo americano. Tudo muito adequado à filosofia ideologicamente comprometida deste início de século.
Jean Baudrillard, guru dos combatentes midiáticos, sintetizou o pensamento do clube do champanhe sobre o atentado ao World Trade Center: "Podemos nos sentir espantados, transtornados, mas isso não impede a coexistência no nosso imaginário do transtorno e do júbilo, mesmo naqueles que depois fazem todo tipo de considerações morais". Cidadãos do bem costumam economizar seus sentimentos de júbilo para ocasiões bem diversas e prosaicas, como o nascimento de um filho, a recuperação de um amigo enfermo ou uma boa noite de sexo. Se quisermos ser grandiosos, rejubilemo-nos matando a fome de alguém, ou dando abrigo a um sem-teto.
Terrorismo, como repressão e tortura, jamais se tratou de uma questão doutrinária. Assim como ditaduras são ditaduras, sejam elas protagonizadas por Médici ou Fidel, ou genocídios são genocídios, pelas mãos de Hitler ou de Stálin, atentados são atentados. Cadáveres não aceitam rótulos. Conforme analisou de forma parcial, porém precisa, Noam Chomsky, os Estados Unidos são um império diante de um dilema incontornável: manter a hegemonia a qualquer preço, e ele por certo será altíssimo, ou abrir mão dos sonhos imperiais e sobreviver como nação ainda assim rica e poderosa, na qual seus cidadãos possam andar nas ruas sem olhar para o céu à procura dos mísseis do terror. Ou quem sabe ainda, simplesmente sobreviver.
A tragédia russa coloca na mesa várias questões. Embora seja moderno atribuir aos EUA todos os males do planeta, e embora eles de fato sejam culpados de vários deles, a verdade é que o terrorismo sempre existiu, na maioria das vezes ligado a causas sem interferência dos americanos. Tampouco o terror depende de qualquer ação para exibir uma reação. Hoje prescinde, até, da simpatia mundial. Torturam-se e matam-se crianças com espantosa facilidade. Já não é preciso uma causa nobre, politicamente defensável. Importante é criar medo. Um mundo com medo é o sonho dos baluartes do totalitarismo. Bush, por exemplo, adora, e pode se reeleger por causa disso. A ninguém mais interessa o medo, exceto, talvez, aos filósofos pós-modernos.
É moderno, ou pós-moderno, falar mal dos EUA, mas eles não são a única questão a ser debatida. O politicamente correto hesita em atacar o terrorismo islâmico, como se não fosse este um ponto vital. A óbvia relação entre o extremismo religioso de parte do mundo islâmico e boa parte das atuais ações do terror global parece não interessar - horrores da história da Igreja católica à parte. Somente eles estão dispostos a perder a vida em atentados suicidas porque somente a eles foi dito que as famílias terão conforto material neste mundo e eles serão recebidos por 72 virgens no reino de Alá. Orgia com meninas dá cadeia braba no Ocidente, mas lá garante o gozo eterno. Qualquer um de nós, convencido desta verdade, ataria bananas de dinamite à cintura, ignoraria o esgar das vítimas e diria: "Virgens, aí vou eu".
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* Eliziário Goulart Rocha é jornalista e escritor, autor dos romances Silêncio no Bordel de Tia Chininha, Dona Deusa e seus Arredores Escandalosos e da ficção juvenil Eliakan e a Desordem dos Sete Mundos.