Laowai, difícil aprendizado

Estou lendo, na verdade degustando, o livro em que a jornalista Sônia Bridi conta suas vivências na China, a segunda delas com filho de …

Estou lendo, na verdade degustando, o livro em que a jornalista Sônia Bridi conta suas vivências na China, a segunda delas com filho de três anos e mais seu companheiro, o fotógrafo Paulo Zero, cujas imagens selecionadas ilustram a edição da Letras Brasileiras. "Laowai", o nome da narrativa, significa, mais que Estrangeiro, "gringo", aquele forasteiro que ganha um apelido mais popular  do que formal. Lao seria velho, Wai, de fora. O próprio nome de Sônia seria mudado para So Ni Ya, com direito a idoegramas que significariam delicadeza e feminilidade.


Estas Histórias de uma Repórter Brasileira na China se referem ao período entre 2005 e 2006, em que Sônia e Paulo se tornaram (afirmação da editora) pioneiros na cobertura latino-americana do imenso país, aquela época ainda mais fechado do que hoje. Independentemente do pioneirismo, as histórias são deliciosas e é difícil a gente largar a leitura. Do pitoresco (como o "sistema bancário" em que os cofres são malas cheias de dólares) ao trágico, como a história de Hu Hua, a intérprete da família que foi entregue, pelos pais, aos quatro anos, para a avó amargurada e vitimada por um comunismo cruel que tudo confiscou da família, tratando de humilhar os que eram chamados de "burgueses exploradores das massas".


Sônia é rápida ao expor esta temporada vivendo como uma chinesa sem sê-lo, sendo estrangeira obrigada a se adequar aos hábitos e costumes de um povo multifacetado e que não tinha a menor vergonha em parar seu filho, Pedro, na rua, para fotografá-lo só porque seus olhos são claros. Uma jornada e tanto, com desafios diários que, deixa antever a autora, foram superados também pela tranqüilidade do marido fotógrafo, inclusive nas ocasiões em que ela arriscava sair mal das paradas ao encarar discussões e hábitos que questionava.


A China, a partir de hoje, é o mais novo quintal do planeta, sediando a Olimpíada, uma ocasião teoricamente de harmonia entre as diferenças mas, que se sabe, de uma competitividade absurda. Sônia soube bem o que era disputar um lugar num balcão de "banco" numa terra que despreza filas e em que vale o pensamento de que os mais fracos são sempre submetidos aos fortes. Quem viu a cerimônia de abertura dos jogos, ainda está segurando o queixo, tamanho foi o banho de criatividade aliada à tecnologia.


É  muito interessante ler algo do ado recente chinês, vendo imagens através dos olhos de uma brasileira ansiosa e minuciosa, ao mesmo tempo que se coteja a mesmice das situações ainda hoje, acompanhando, via internet, os problemas de sempre: a Censura, o controle centralizador e burocrático do Estado, o crescimento que põe abaixo comunidades inteiras, sem dó, as brigas com o Dalai Lama e o Tibete, e com Taiwan.


O chinês que hoje aparece em cada televisão do mundo, em cada tela de computador, moderno, arrojado, mais rico do que já foi, é o mesmo que ainda comete a estupidez de comer carne de cachorro depois de torturar estes animais. É também o mesmo que, como diz Sonia, prefere guardar a comida viva em vez de colocá-la no freezer ou cozinhá-la, o cidadão que ainda venera o retrato do lunático Mao Tse Tung, respeitosamente, mas arranca o coração de uma cobra para comê-lo, ainda batendo, e que espeta escorpiões vivos e os coloca para fritar em óleo fervente, rindo para as emissoras de televisão.


País de contrastes, como o da gente, afinal, a China de agora consome e quer ficar ainda mais rica, mas prende jornalistas que ousam desafiar o poder de seus burocratas. A organização Repórters Sans Frontières, sediada em Paris, vem fazendo barulho desde que a tocha olímpica ou pela França. E convoca para manifestações diante das embaixadas em vários países, neste dia de festa.


Ainda nesta quinta, a RSF lançou um blog abordando a real situação dos direitos humanos entre os chineses, e uma cybermanifestação diante do estádio olímpico de Pequim, aquele imenso e intrigante ninho. Até o meio da tarde desta sexta, a cybermanif contava com mais de 13 mil participantes. Um cardápio virtual, com cartazes, oferece cinco opções para quem quer participar, através de frases mobilizadoras: Eu boicoto a abertura dos jogos, Liberem os prisioneiros olímpicos, Sim ao esporte, não à repressão, Ideal olímpico traído, COI cúmplice e Nada de festas olímpicas sem liberdades. É só escolher, validar, convidar alguns amigos e lá está o nome do manifestante a milhares de quilômetros de distância, protestando seguramente contra o arbítrio.


Há cerca de 50 cyberdissidentes e 30 jornalistas detidos, hoje, por haver criticado os Jogos e a organização. Entre eles, o mais conhecido é Hu Jia, preso em dezembro ado, quando chutava o balde através de seu blog.


A manutenção da censura na internet é outro ponto de batalha da instituição cujo grande feito visual foi criar, a partir das argolas -símbolos dos jogos, uma penca de algemas unidas por correntes, um autêntico contra-símbolo.


Agora, é esperar para ver como se desdobrará toda a situação. Enquanto isso, vou lendo o livro de Sônia Bridi que ensinou o grilo de estimação de seu filho a ser vegetariano. Mais de nojo do que piedade, por ter de mexer na comida: uma porção de vermes vivos!

Autor

Jornalista formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Maristela Bairros já atuou como redatora, repórter, editora e crítica de teatro nos principais diários de Porto Alegre, colaboradora de revistas do Centro do País e foi produtora e apresentadora nas rádios Gaúcha, Guaíba AM, Guaíba FM e Rádio da Universidade, assessora de imprensa da Secretaria de Estado da Cultura e da Fundação Cultural Piratini. É autora de dois livros: Paris para Quem Não Fala Francês e Chutando o Balde, o Livro dos Desaforos, ambos editados pela Artes & Ofícios.

Comments