Jornal e política

Por José Antonio Vieira da Cunha

Tem uma série ofuscada no catálogo da Netflix que vale muito a pena ser vista e revista. É O Jornal, que surpreende já no primeiro momento por ser ambientada em uma linda cidade portuária da Croácia e trazer os mesmos dilemas vividos pela imprensa e pelos profissionais de jornalismo no Brasil. O realismo não é à toa; o autor, Ivica Rijeka, é jornalista que atuava em um órgão independente até ser comprado por um empresário milionário que precisa de um escudo como a boa e velha imprensa para acobertar suas ilegalidades.

Esta mesma realidade ele traz para a ficção. Novine, o jornal do título, é o único diário independente da região, tenta produzir o melhor jornalismo, mas vê a tiragem e o ritmo dos anunciantes minguarem cada vez mais. Na dificuldade econômica, até a manutenção das rotativas é precária. É esta crise que vai facilitar a venda da publicação, um movimento que ameaçará sua tentativa de desenvolver um jornalismo sem amarras para descambar para o viés de uma publicação movida exclusivamente por interesses econômicos e políticos. O roteiro de O Jornal estimula muito a reflexão sobre a importância do jornalismo e o papel do jornalista ao reproduzir cenas e situações características de uma redação.

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A newsletter Meio merece sua atenção, se já não a tem. Todo dia, cedinho, é um informativo de oito minutos que chega a seu imeil trazendo as notícias relevantes do dia anterior. E aos sábados dá um informe especial, mais aprofundado, com um ou dois temas que vão exigir um tempo de leitura maior. Que vale muito a pena, como no caso desta última semana, em que traz uma pensata sobre a guerra cultural que nos aflige e angustia. 

Em um texto rico em fatos e detalhes, Guilherme Werneck analisa o cenário atual, a partir da derrubada dos vetos do presidente da República às leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc 2. Mostra que as críticas e vaias digitais a artistas como Daniela Mercury, Wagner Moura, José de Abreu e Anitta são posts requentados com diferentes inverdades girando nas redes, num trabalho cirúrgico liderado pela tropa de choque cultural da extrema-direita. Escreve: "Este tipo de ataque coordenado à cultura faz parte de uma estratégia maior do grupo que gravita em torno de Bolsonaro. E a Lei Rouanet, com toda a sua complexidade na vida real e com o que representa simbolicamente, presta-se a arma perfeita na guerrilha digital. É interessante entender como, em pouco mais de 30 anos, uma lei que nasce acusada de ser uma afronta aos mecanismos de financiamento cultural, levada a cabo por liberais, se torna, no discurso da extrema-direita, uma ferramenta de dominação comunista." 

A bem da verdade, lembra que as ofensas à comunidade cultural não são de hoje. O ex-presidente Collor já havia se notabilizado pela extinção da Embrafime, e desde o governo Dilma, pouco antes da guerra ideológica atual, os investimentos federais em cultura vêm diminuindo. O autor analisa o desmonte das instituições na área cultural e a política de caça às bruxas, com a maioria da classe artística sofrendo perseguição nas prestações de contas de projetos realizados e nos quesitos técnicos de projetos propostos. No Brasil moderno, o governo se empenha em sufocar a indústria cultural, como detalha este texto do Meio. 

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A polarização política, quando se torna radical, é cruel, com situações em que o contraditório é rechaçado com grosseria porque acabam vicejando os sentimentos de intolerância e ódio, aliados muitas vezes à violência. O episódio do assassinato em Foz do Iguaçu precisa ser encarado com a maior seriedade e dele poderíamos tomar decisões sensatas. Seria um momento excelente para se refletir sobre a violência e seus efeitos, mas nosso Presidente da República vai na contramão do bom senso e bota lenha na fogueira: "É o lado de lá que dá facada, que cospe, que destrói patrimônio, que solta rojão em cinegrafista, que protege terroristas internacionais, que desumaniza pessoas com rótulos e pede fogo nelas, que invade fazendas e mata animais, que empurra um senhor num caminhão em movimento". Vociferou, mas foi incapaz de manifestar alguma forma de solidariedade à vítima e sua família; preferiu responsabilizar a esquerda pelo clima de agressividade da campanha.

Não custa lembrar: no atual governo, o registro de armas de fogo aumentou 474%.

Autor
José Antonio Vieira da Cunha atuou e dirigiu os principais veículos de Comunicação do Estado, da extinta Folha da Manhã à Coletiva Comunicação e à agência Moove. Entre eles estão a RBS TV, o Coojornal e sua Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre, da qual foi um dos fundadores e seu primeiro presidente, o Jornal do Povo, de Cachoeira do Sul, a Revista Amanhã e o Correio do Povo, onde foi editor e secretário de Redação. Ainda tem duas agens importantes na área pública: foi secretário de Comunicação do governo do Estado (1987 a 1989) e presidente da TVE (1995 a 1999). Casado há 50 anos com Eliete Vieira da Cunha, é pai de Rodrigo e Bruno e tem cinco netos. E-mail para contato: [email protected]

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