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Usar algumas palavras que ainda não tenham idioma. Manoel de Barros No ano anterior ao centenário do gaúcho Mario Quintana, nascido em 30 de …
Usar algumas palavras que ainda não tenham idioma.
Manoel de Barros
No ano anterior ao centenário do gaúcho Mario Quintana, nascido em 30 de julho de 1906 no Alegrete, o ator e amigo Rogério Fróes, sabendo da minha iração e da amistosa relação desfrutada no ado com o poeta, confessou sua também iração e vontade de fazer um espetáculo sobre ele.
Dessa conversa, saiu um acerto para eu escrever e dirigir um espetáculo com ele, Rogério, dizendo Quintana.
Parti para uma tentativa de mostrar Quintana exposto por ele mesmo. Costurei um texto no qual Rogério não diria absolutamente nada, em prosa ou verso, que não tenha sido escrito por Quintana. Uma atriz completaria o espetáculo.
Aconteceu que Rogério, tomado por compromissos profissionais ininterruptos no teatro e na TV, não conseguiu tempo para os ensaios, mesmo quando eu já convocara a promessa de atriz, a jovem Bianca Frossard, para ser a narradora e "entrevistadora" no palco.
A promessa de espetáculo está totalmente virgem e virou uma "promissória de cigano". Em compensação, na abrangente pesquisa que fiz em toda a obra de Quintana - prosa e verso -, creio que fiz uma descoberta.
Uma matéria paga na 2ª capa da revista Seleções de maio de 1952 traz um texto assinado por Quintana. Talvez seja o único trabalho publicitário do poeta.
Do espetáculo que não aconteceu, selecionei para publicação aqui um trecho que insere outros poetas no uso do vocábulo mais usado por Quintana, no singular e no plural: vento.
Narrador - "Alma minha gentil que te partiste, tão cedo desta vida descontente?"
Assim como na obra lírica de Camões a palavra mais freqüente é "alma", Quintana, já no título de seu primeiro livro, "Rua dos Cataventos", evidencia "vento" e "ventos" como palavras de presença constante.
Rogério: E o que mais enfurece o vento são esses poetas inveterados que o fazem rimar com lamento?
Narrador - Quintana extrai do vento grandes achados.
Rogério - A maior dor do vento é não ser colorido.
Narrador - Poeta, você pensou isso ao ver um arco-íris? Ouça Gilka Machado que se desnudava na "Volúpia do Vento":
E não podes saber do meu gozo violento,
quando me fico, assim, neste ermo, toda nua,
completamente exposta à Volúpia do Vento!
Rogério - Meu Deus! e se tu fizesses agora mais uma das tuas mágicas ao menos para colorir o vento!
Narrador - E o poeta quer cantar o vento? Manuel Bandeira fez a "Canção ao Vento":
O vento varria as mulheres?
E minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De afetos e de mulheres.
O vento varria os meses
E varria os teus sorrisos?
O vento varria tudo!
E minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De tudo.
Narrador - Lembrando-se do filme "E o vento levou", o poeta conta o que o vento não levou.
Rogério - No fim, tu hás de ver que as coisas mais leves são as únicas que o vento não conseguiu levar:
um estribilho antigo
um carinho no momento preciso
o folhear de um livro de poemas
o cheiro que tinha um dia o próprio vento?
Narrador - Poeta, seu colega Manoel de Barros estudou "O Vento":
Se a gente jogar uma pedra no vento
Ele nem olha pra trás.
Se a gente atacar o vento com enxada
Ele nem sai sangue da bunda
Ele não dói nada.
O vento não tem tripa.
Se a gente enfiar uma faca no vento
Ele nem faz úi.
A gente estudou no colégio
Que vento é o ar em movimento
e que o ar em movimento é o vento.
Eu quis uma vez instalar
uma costela no vento
a costela não parou nem.
Hoje eu tasquei uma pedra no
organismo do vento.
Depois me ensinaram que
o vento não tem organismo.
Fiquei estudando.
Aconselho a quem nunca leu Manoel de Barros que o faça com urgência.
Quem já leu que vá relendo, pois esse "de Barros" nasceu em 1916 e vive lá, no seu Pantanal, surpreendendo sempre. E eu, sempre que releio "O Livro das Ignorãças", fico um pouquinho menos ignorãte.
Quintana definiu o vento como "pastor de nuvens" enquanto Fernando Pessoa festejava:
"Às vezes ouço ar o vento; e só de ouvir o vento ar, vale a pena ter nascido".
Eu gosto da imagem do Quintana e desgosto total do gosto do Pessoa.
Não é só por milhares de praias e piscinas que o vento já me furtou, mas também pelas janelas e portas batidas, por? Prefiro sintetizar.
O vento é um saco.
Inté.
P. S.: Quanto ao título obedeço ao Manoel de Barros para usar palavras que ainda não têm idioma.
