Ingrid sob fog cruzado

Estava demorando, mas era fatal que acontecesse: Ingrid Betancourt, um ícone das ações de libertação de reféns feitos pelas Farc, está levando tiro de …

Estava demorando, mas era fatal que acontecesse: Ingrid Betancourt, um ícone das ações de libertação de reféns feitos pelas Farc, está levando tiro de tudo que é lado, ou melhor, dos que com ela estiveram na selva. O Le Point destaca em sua matéria intitulada Ingrid Betancourt: ange ou démon? os testemunhos de oito companheiros da política franco-colombiana que, diz a legenda da foto da revista em sua versão virtual, "está longe, muito longe da imagem de santa divulgada pelas mídias do mundo inteiro".


Só faltou o Le Point fazer um mea culpa porque foi ele também uma destas mídias que colocaram Ingrid no pedestal, seja em busca de justiça, seja em busca de (obviamente) mais leitores.


Não dá para julgar, aqui, os veículos - e digo isso sem constrangimento porque não faltam textos meus justamente acusando os dignos colegas e donos de empresas de comunicação de agir no limite entre a má-fé e o excesso de babaquice.


De Ingrid ninguém pode tirar o papel de ter sido mobilizadora de um enfrentamento antes jamais visto com a decadente e arrogante organização terrorista colombiana. É besteira a alegação de alguns dos que saíram do mato graças ao poder econômico e político da família da ex-candidata à presidência da Colômbia de que havia esforço para libertar apenas a personagem mais conhecida, esquecendo-se dos demais. Ou são burros ou sem-caráter porque duvido que estivessem hoje em liberdade se ela não tivesse sido o motivo das negociações até agora nebulosas entre os matadores que se dizem revolucionários e as autoridades, o inável Hugo Chávez incluído.


Vai sair ainda muito coelho desta cartola. Os quatro livros focalizados pelo Le Point são apenas uma pontinha do tititi. Clara Rojas, que fez um filho com um guerrilheiro (o que, a meu ver, sinceramente, é muito furor uterino e nem a síndrome de Estocolmo explica!) e era parceira da famosa prisioneira na corrida pelo trono da Colômbia, lançou o livro Cautiva e acusa a família de Ingrid de ter escondido correspondência que ela havia enviado aos seus, "provavelmente para manter Ingrid no papel principal". E se queixa também da frieza de quem ela tinha por "irmã" diante de sua gravidez.


John Pinchao, o policial que também provou da hospitalidade das Farc, escreveu Mi Fuga Hacia la Libertad e se queixa das grosserias de Ingrid em especial com a chegada de reféns norte-americanos, garantindo, com sua intransigência, uma acomodação especial que os outros não tiveram. Por outro lado, o policial diz que ela foi muito, mas muito querida com la Rojas e até roupinhas para o bebê conseguiu!


Já Luiz Eládio Perez, autor de Inferno Verde, fica do lado da mulher que o aponta como seu constante defensor, claro. Diz que tudo é fruto de inveja, ciúme e "cólera" dos demais presos por causa do que ele chama "exposição midiática" de Ingrid.  E se derrete todo dizendo que ela é a melhor em vários aspectos. Hmmmmm! Ele deve saber bem do que fala.


Quanto aos três funcionários do Pentágono, Tom Howes, Marc Gonsalves, Keith Stansel, que fizeram, a seis mãos, Out of Captivity, eles não têm a menor paciência com a companheira de dias ruins: "Aqui não tem lugar, ponham eles em outro lugar",  teria dito ela aos esfomeados das Farc, na chegada dos "estrangeiros". Estranho: não parece a mesma a mulher que apareceu naquele vídeo magra e chorando e que estaria até morrendo, conforme foi noticiado dias seguidos, comovendo o público. Gonsalves acusa Ingrid de instigar os terroristas a fazer revista nos pertences dos três atrás de documentos que ela mesma lhes houvera enviado. "Ingrid nos tratava como se ela estivesse do lado das Farc", afirma o moço.


Nove meses depois da hollywoodiana libertação, la Betancourt está nos Estados Unidos e, afirma o Le Point, prepara uma nova biografia (a primeira saiu em 2001), agora com uma tal "dimensão espiritual", segundo seu editor.  A revista sa se queixa de que tentou contato com a estrela dos reféns farquianos e não obteve resposta.


Faz parte das tarefas jornalísticas este tipo de revés. Até porque a moça está bem faceirinha, livre, leve e solta, ganhando seu honesto dinheirinho com suas memórias. Quanto aos pés-rapados que ainda estão em poder das Farc, quem está preocupado com eles? As mídias, em especial, é que não.

Autor

Jornalista formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Maristela Bairros já atuou como redatora, repórter, editora e crítica de teatro nos principais diários de Porto Alegre, colaboradora de revistas do Centro do País e foi produtora e apresentadora nas rádios Gaúcha, Guaíba AM, Guaíba FM e Rádio da Universidade, assessora de imprensa da Secretaria de Estado da Cultura e da Fundação Cultural Piratini. É autora de dois livros: Paris para Quem Não Fala Francês e Chutando o Balde, o Livro dos Desaforos, ambos editados pela Artes & Ofícios.

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