In forma (16/04)
Por Marino Boeira

IMPORTA A OBRA, NÃO O AUTOR
A morte de Mario Vargas Llosa (1936/2025) , essa semana desencadeou novamente o velho debate entre as opções políticas pessoais do autor e sua obra.
Como todo mundo sabe, Llosa se prontificou a usar todo o seu prestígio pessoal de escritor e ganhador do prêmio Nobel de Literatura, para defender as causas políticas do centro e da direita no Peru, se lançando inclusive candidato dessas forças à presidência do País.
Um procedimento até abominável, mas que não invalida o valor extraordinário de sua obra literária. Nas redes sociais, iletrados (as) que possivelmente não leram nada de Llosa, rapidamente se irmanaram na crítica ao homem.
Georg Lukács, lembrado essa semana pelo professor José Paulo Netto no lançamento no Brasil do primeiro volume do seu livro A Estética, já dizia que a Política é o Meio e a Cultura é o fim. Ninguém precisa concordar com o pensamento desse húngaro, que José Paulo considera o maior marxista do século XX, depois do próprio Marx, mas condenar a obra porque o autor não tem o comportamento esperado, caso de Llosa, é lamentável.
Deve-se sim criticar o homem pelo comportamento pessoal que na nossa visão é politicamente atrasado, mas é importante que se preserve e valorize sua obra, quando for o caso.
Llosa não é o primeiro a sofrer esse patrulhamento ideológico primário, não apenas na literatura, mas também em outras artes.
Elia Kazan (1909/2003) foi condenado publicamente na entrega do Oscar de 1999 por alguns dos mais importantes atores e diretores do cinema americano pelo seu triste papel de delator dos seus colegas durante o macartismo, mas nenhum deles esqueceu de lembrar que Kazan fez alguns dos mais importantes filmes americanos de todos os tempos, como Sindicato de Ladrões, Viva Zapata, Vidas Amargas, Um Rosto na Multidão e Clamor do Sexo
O que dizer então de John Ford (1894/1973) John Wayne (1907/1979), pessoas no mínimo conservadoras politicamente, mas que juntas fizeram alguns dos mais importantes filmes do cinema mundial, como No Tempo das Diligências, Depois do Vendaval e Rastros de Ódio?
No Brasil, os exemplos de confundir o autor com sua obra são muitos. Nelson Rodrigues (1912/1980), o maior teatrólogo brasileiro (Vestido de Noiva, Beijo no Asfalto, Boca de Ouro, Toda a Nudez Será Castigada) e um cronista da mais alta qualidade, teve sua obra colocada sob suspeita porque se aproximou do ditador de plantão, mais do que tudo pelas afinidades futebolísticas.
Outro exemplo é Rubem Fonseca (1925/2020), talvez o mais importante escritor moderno brasileiro (Feliz Ano Novo, O Cobrador, Agosto, O Caso Morel, Bufo & Spallanzani e a Grande Arte). Sua obra deveria ser esquecida porque vendeu seus dotes de escritor primeiro para a Light e depois para o IPES/IBAD.
Com esse método de julgar as pessoas pelos seus atos políticos e não pelo seu valor artístico, no Brasil os únicos escritores acima de qualquer suspeita seriam Jorge Amado e Graciliano Ramos. Acho que nem Machado de Assis se salvaria, por nunca ter se assumido como negro.
Finalmente, nós que lembramos Karl Marx como a mais importante figura política do século XX e toda sua obra como fundamental para a interpretação do capitalismo, não podemos esquecer que ele incorreria em todos os pecados apontados hoje pelos politicamente corretos pela sua linguagem racista e preconceituosa. Marx demonstrou mais de uma vez seu desprezo pelo genro jamaicano Paul Lafargue pela sua cor; chamou Ferdinand Lassale de "judeu gorduroso" e o francês Adolphe Thiers de "anão" durante a Comuna de Paris. E isso sem lembrar que durante muito tempo quem pagava as contas da família Marx foi Engels, um homem muito rico.
Vamos então lembrar os pecados de Llosa, Kazan, Rubem Fonseca, Nelson Rodrigues e até Marx, mas acima de tudo, vamos respeitar e valorizar suas obras.