IN FORMA

Por Marino Boeira

Toda unanimidade é burra

A frase "toda unanimidade é burra" foi popularizada por Nelson Rodrigues, sempre rebelde em aceitar determinadas verdades comuns e uma justificativa a mais para posições políticas reacionárias que o nosso grande dramaturgo cultivava. Lembrei dela, ao ficar sabendo que um projeto obscurantista da vereadora Mônica Leal, proibindo a distribuição e venda do livro Mein Kampf, de Adolf Hitler, em Porto Alegre, tinha sido aprovado pela unanimidade dos 32 vereadores, inclusive os pertencentes a partidos ditos de esquerda como o PT (três vereadores), o PCdoB (dois vereadores), o PSOL (três vereadores) e até mesmo o PDT (dois vereadores) e o PSB (um vereador).

A esquerda, por princípio, não deveria temer os livros. Historicamente, sempre foram as forças politicamente retrógradas que perseguiram os livros e seus autores.

A Igreja Católica fez um index dos livros proibidos, o Index Librorum Prohibitorum, que durou de 1559 a 1966, quando foi oficialmente extinto. Na sua última edição, em 1948, havia quatro mil títulos proibidos para os católicos, entre os quais obras de cientistas e filósofos, como Galileu, Copérnico, Descartes, Voltaire e principalmente de escritores como Flaubert, Milton, Vitor Hugo, Zola, Balzac e Sartre.

Em junho de 1933, logo após subir ao poder, o governo de Adolf Hitler promoveu a Bücherverbrennung, um termo alemão que significa queima de livros em praça pública. Aqui em Porto Alegre, logo após o golpe de 64, eu vi um grupo formado por militares, sob o comando do então tenente Tonelli, que depois foi juiz de futebol, jogando livros pela janela da livraria Farroupilha, que vendia obras sobre o marxismo, na Andrade Neves.  

Essa mesma ditadura militar se especializou na censura e proibição de livros. Na sua obra 'Nos Bastidores da Censura', Deonísio da Silva relaciona 254 títulos de livros proibidos, só no governo Geisel, pelo ministro da Justiça, Armando Falcão. Na Literatura, é um clássico o livro de Ray Bradbury 'Fahrenheit 451' e que depois virou um filme de sucesso de François Truffaut, sobre a queima de livros durante uma ditadura.

A desculpa para a atitude obscurantista da Câmara de Vereadores de Porto Alegre é que o livro Mein Kampf, um panfleto publicado por Adolf Hitler, no dizer da vereadora Mônica Leal, do PP, "tem um potencial lesivo incalculável, além dos danos que já produziu por meio da propagação de ideais nefastos que a obra preconiza, e que protagonizou, seguramente, como uma das páginas mais sombrias da história recente da humanidade".

Historicamente, uma afirmação falsa da vereadora, como diz o professor Mário Maestri em comentário publicado no Sul 21: "A obra não protagonizou nada. A página histórica dolorosamente sombria que constituiu o nazismo não foi produzida pelo livro, mas pelo movimento nazista, seus militantes e, sobretudo, seus grandes apoiadores, o capital monopólico alemão, ou seja, a grande burguesia alemã."

Quantos e importantes escritores brasileiros não se enquadrariam na visão caolha dos nossos vereadores"

Será que a ilustre Câmara de Vereadores vai também legislar proibindo a circulação e venda dessas obras do Padre Anchieta, de Monteiro Lobato ou de Gilberto Freire? Qual a qualificação dos vereadores de Porto Alegre para decidir que livro pode ou não ser oferecido aos leitores? A resposta dos leitores de Porto Alegre deve ser: nenhuma

Quem nos garante que amanhã ou depois não pretendam os nossos ilustres vereadores também proibir livros de Lenin, Trotsky ou outros pensadores marxistas? Em toda essa história, o que chama a atenção é o silêncio dos nossos intelectuais, dos defensores da liberdade de escrever e de ser lido, dos jornalistas de esquerda, dos livreiros de Porto Alegre e das diversas faculdades de Letras. Será que todos concordam com a posição dos nossos vereadores ou isso é um tema que não interessa a eles?

Autor
Formado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), foi jornalista nos veículos Última Hora, Revista Manchete, Jornal do Comércio e TV Piratini. Como publicitário, atuou nas agências Standard, Marca, Módulo, MPM e Símbolo. Acumula ainda experiência como professor universitário na área de Comunicação na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e na Universidade do Vale do Rio do Sinos (Unisinos). É autor dos livros 'Raul', 'Crime na Madrugada', 'De Quatro', 'Tudo que Você NÃO Deve Fazer para Ganhar Dinheiro na Propaganda', 'Tudo Começou em 1964', 'Brizola e Eu' e 'Aconteceu em...', que traz crônicas de viagens, publicadas originalmente em Coletiva.net. E-mail para contato: [email protected]

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